Uma carta para Márcia

Claremont, 15 de maio de 2023.

Márcia, querida

Já faz um tempinho que queria te escrever mais uma carta, depois daquela primeira que enviei há alguns meses, e hoje tu publicaste a carta aberta a Janja – que me comoveu. Então, retomo a conversa por meio desse meu blog empoeirado. Coisa boa que é mover as coisas, limpar, mudar tudo de lugar. Herdei o hábito de minha avó, da re-volta, refazenda da vida doméstica no gesto de trocar os móveis de lugar a cada pouco.

Tu sabes que eu te admiro as coragens e as fibras. 

Mas cada vez que novamente eu leio ou assisto as coisas que as pessoas (quase todos indivíduos machos da nossa espécie) dizem de ti, do que pensas e dizes, do teu fazer no mundo, aquele meu casal que vive na sete em Libra, Marte e Palas, se alvoroça por uma peleiazinha. E justamente porque agora vejo meu mapa povoado também pelas “asteróidas” (conversa pra outros dias: tínhamos que chamá-las “as planetas”!), não fiz mais do que postar hoje mais cedo, no Twitter, o link pro teu texto, incluindo um breve comentário:

Quer dizer, amiga, como se diz em gauchês, “me aguentei” pra não brigar por lógica.

Fiz almoço escutando notícias do Brasil, e comentários tipo: NOOOOSSSA, a familícia agiu como mi-LÍ-cia quando alcançou os picos do poder pelo qual sempre, e unicamente, trabalharam a vida toda! E eu ainda assisto? Pior que sim. E ainda uso o Twitter.

Depois do almoço jardinei um pouco e ainda fui comprar comidas; enquanto esperei minha carona no café-ao-lado-do-hortifruti, avancei mais umas páginas na lida com o livro do Shah. Sabedorias ancestrais a gente não despreza, né?

Voltei pra casa, transplantei umas mudas grandes de Artemísia da horta pro jardim da frente (as mudas que plantei no final do outono estão virando duas árvores, guria, uma das quais estava sufocando meus alhos e cebolas!), comi bergamota e só agora às seis da tarde é que sento pra te escrever. Quero te contar como eu leio o causo em questão – ou, melhor, como eu entendi o processo de criação desse causo – e com isso te convidar pra conversar, de amiga pra filósofa e vice-versa. Vamos?

A Maior Artemísia do Meu Jardim

Flor, tive de parar ontem porque deveres doméstico se impuseram. Agora são 11:09 do dia 16 de maio, e os mesmos deveres (mais a notícia de que meu cachorro está hospitalizado) me tomaram quase toda a manhã. Porque eu considero dever cuidar do meu jardim, que está cheio de cebolas florescendo e eu estava estudando como lidar com esse fenômeno. Aparentemente não terei cebolas este ano, mas muitas, muitas sementes para plantar quando for a época.

Então, de ontem pra hoje eu li mais um texto sobre o causo, da Laura Astrolabio, no Instagram. Mas como eu não pretendia falar sobre o ponto do texto dela (que é a legitimidade da existência mesma do cargo de Primeira-Dama), que é também parte do teu, não vou comentar. Não, pera, só uma coisinha: ela diz que tu falaste do cargo de Primeira-Dama em um texto, mas foi na entrevista ao UOL (e em outras), ou tu escreveste algo antes disso que eu não li? Seja como for, tu deves estar se perguntando: “Mas se não é sobre isso (a “função Primeira-Dama”), então sobre o que vamos conversar?” E eu te respondo que queria começar sublinhando o que me parecem ser algumas pressuposições de algumas das coisas que disseste na entrevista que provocou todo esse ti-ti-ti ridículo. É muita má-fé tomar o que tu disseste como indício de que estarias querendo “derrubar Janja” (não vou inserir hiperlinks pra isso, que não quero dar cliques pros canalhas). Pra ti, este é mais um capítulo da perseguição que vens sofrendo há anos, por gente de fora e de dentro do campo progressista, e que te levou ao exílio. Pra mim, que já te achei uma chata no passado e hoje entendo melhor de onde vinha essa impressão, hoje que te conheço pessoalmente e posso me dizer tua amiga, hoje que eu não tenho mais medo de ser considerada chata, este é um momento de compartilhar contigo meu modo de entender algumas discussões feministas.

Começo observando aqui o que disse no meu tweet, que a tua foi uma colocação hipotética, condicional. Dessas que qualquer uma que já tenha tentado ensinar lógica sabe bem como é difícil (cada vez mais difícil) transpor aos estudantes. Vou voltar a isso adiante. Por ora observo que se já não é fácil para muita gente entender uma afirmação condicionada pela outra (tipo “Se chover, então levo o guarda-chuva” – sendo que podes também levar se não chover, ou se não souber se vai ou não chover) – as coisas ficam mais complicadas quando se afirmam duas condições ou hipóteses antes de outra, como em “Se chover, e se estiver frio, então levo guarda-chuva.” E foi exatamente esta a tua resposta a uma pergunta da Milly Lacombe. Disseste “Se eu for bastante radical, e se eu fosse a Janja, [então] renunciava a esse cargo de primeira-dama e ia fazer alguma coisa realmente mais revolucionária”.

Vê, Márcia, todo o causo depende de uma leitura dessa tua afirmação, ou melhor, do modo como ela foi lida pelos editores do UOL (que escolheram a manchete Se quer revolução, renuncie ao posto de primeira-dama.). E, evidentemente, de como ela foi sendo relida e replicada em/por outros veículos – uns mais outros (bem) menos sérios. O que eu te proponho revisitar, de início, é a pergunta que te endereçou a Milly (cacoete filosófico meu, esse de não responder as perguntas antes de pensar nos termos em que ela foi feita, pra ver se não tem ali algum pressuposto problemático, com o qual não quero me comprometer, ou mesmo um intencional pega-ratona).

 Degravei, do trecho de vídeo selecionado pelos editores para abrir o texto:

A simples menção do nome “Janja” provoca uma loucura coletiva, né, e aí a gente mistura com misoginia, com machismo – a gente sabe o que a Dona Marisa passou, né, mas só que Janja vem aí com uma potência revolucionária, né. Eu escrevi um texto outro dia em que, assim, mulheres com libido e transantes incomodam muito mais, né. Como você tem visto o papel da Janja.. Que revolução ela pode ainda imprimir nessa função [de Primeira-Dama].

Agora, a tua resposta aceita sem discussão a premissa da Milly, de que há uma potência revolucionária na figura da Janja, como primeira-dama (tese com a qual eu concordaria, não é esse o ponto). Mais do que isso, a Milly deixa claro que essa potência se relaciona ao fato de Janja emanar uma energia de mulher transante, que expressa sua libido de um modo que perturba muito os humanos não ou pouco transantes desse mundo. O problema principal com a tua resposta, a meu ver, é que nela todas as palavras conectadas com a ideia de revolução não têm a mesma carga semântica a ela atribuída pela jornalista. O teu sentido de “revolucionário” se associa ao teu feminismo, radical, que até onde entendo ainda não discute questões de política da libido transante. Me engano?

UFRGS – Campus do Vale numa tardezinha qualquer

Ora, sabemos que Janja se considera e é considerada feminista. Sabemos (e tu muito mais e melhor do que eu) que os feminismos são múltiplos, variados histórica e socialmente, e por vezes até conflitam entre si – mas nunca no caroço, que é o mesmo: pleitear o reconhecimento e a reparação das inequidades que nos apagam, esmagam, oprimem e matam simbólica, financeira, espiritualmente, pra dizer bem pouco. A Janja, até onde eu sei, jamais se quis revolucionária. Das poucas entrevistas que eu vi dela, como a que ela concedeu para a Emissora em 13 de novembro de 2022 (você assistiu?), ela se diz uma sonhadora pé-no-chão que pensa em problemas importantes pro mundo e que agora está tendo a oportunidade de contribuir para algumas das mudanças que o Brasil e o mundo exigem. 

Ela é socióloga, né, trabalhou com questões de sustentabilidade das comunidades indígenas na região de Itaipú, e diz que considera que sua militância se fez muito mais no campo profissional do que no político. Eu estou trazendo esses elementos aqui pra gente não falar dela de forma caricatural, como os entrevistadores parecem ter te induzido a fazer, e vestir a Janja com o espartilho da posição inessencial e subalterna (tuas palavras) de primeira-dama. (Se e quando a gente for conversar sobre “o que é isso, ser uma primeira-dama?”, eu gostaria de estudar mais antes, tá?) Tudo o que eu tenho acompanhado das ações de nossa primeira-dama me mostra que é distorção demais falar dela, e da função dela, como a pessoa que ajuda o Lula a virar as páginas dos seus discursos. Sim, ela faz isso – porque oxalá faz o que quer – mas ela também se engaja sobremaneira nas questões políticas (tanto que é detestada por companheiros e companheiras de todas as querências). Mas, mais do que isso, e muito importantemente: ela não é uma feminista radical como tu. E, ainda assim, o potencial revolucionário dela como primeira-dama está na cara, amiga, é só acompanhar um pouco! Não existisse esse potencial, ela não seria alvo, como tu tantas vezes foste e ainda é, de tantas falsificações que a desenham como “muito metida”, “muito feminista”, “não sabe seu lugar” etc..

A tua reação ao que entendo como bait da jornalista foi a de primeiro tentar separar a Janja-pessoa da função ou cargo de primeira-dama, o que eu não objeto. Só que, a seguir, tu dizes que se ela, Janja, caso fizesse o que tu farias no lugar dela e renunciasse a seu cargo, daria um salto na cultura, um empuxo forte, né, ou melhor dizendo um impulso forte pra cultura feminista. (Teu ato-falho é importante, mas eu quero focar em outra coisa).

É que, minha cabeça de professora de lógica, essas tuas inferências são instâncias de fórmulas condicionais gerais como “eu, no teu lugar, faria x”, “eu, se fosse tu, não aceitaria y”, “eu, se fosse ela, daria uma pirueta naquela hora” – que eu considero como vícios de linguagem/pensamento daqueles que temos e nem sentimos. Mas eu não gosto de engolir sem mastigar, e fico feliz por ter a chance de, nessa carta, contar a ti e aos leitores do meu blog que há um tempo já eu penso assim: usar esse tipo de expressão não tem sentido lógico, pelo simples fato de que se eu fosse tu, eu seria tu, não eu e, assim, agiria exatamente como tu ages. E aqui a lógica e a gramática dão as mãos (tô aqui lembrando do capítulo do velho livro de Copi sobre as funções da linguagem, onde ele distingue funções lógicas e funções gramaticais da linguagem). Porque apesar dessas estruturas frasais parecerem expressões lógicas condicionais ou hipotéticas, o “se… então…” nelas não possuem função lógica, de amarração das condições de verdade do antecedente e do consequente (como eu sugeri no meu tweet), mas têm uma função modalizadora, quer dizer, são um artifício que quem as emprega utiliza para dar conselhos, ou mesmo ordens.  E é talvez por isso que a frase que os editorialistas escolheram pra manchete é o teu dito no modo imperativo. Quando eu a li pela primeira vez, pensei: garanto que distorceram o que a Márcia disse! Mas, infelizmente, esse não é o caso.

Porque a implicatura conversacional do teu dito é a de aconselhar a Janja, não a de discutir o que a função de primeira-dama representa. Se fosse isso, a conversa talvez não soasse condescendente como soou a tantos ouvidos – alguns dos quais são ouvidos de mentes sedentas por clique, como as que que te acusam de algum conluio contra a primeira-dama. O tom de que falo me ressoou forte quando disseste que, se fosses ela, iria cuidar da minha vida e fazer coisas muito revolucionárias. Mas, de novo, se tu fosses ela, não seria revolucionária! Depois, dizes:  

Quer fazer uma revolução? Larga disso; vai ter uma vida própria, vai pro seu trabalho… Sair do papel da esposa que apoia, eu acho que é importante pras esposas do Brasil. Então, se ela quer servir de exemplo, eu me proponho a fazer toda a assessoria (risos)…

(Chiste importante, penso eu, mas volto ao meu ponto.)

Ocorre que Janja não quer fazer revolução. Ou quer? Quem fala em potencial revolucionário é Milly Lacombe! Amiga, eu acho que caíste numa sorte de arapuca.

Independentemente disso, é obvio que eu posso te imaginar argumentando assim: Gisele, o que eu defendo é que não é possível ser uma feminista radical e uma primeira-dama, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, pra lembrar o Estagirita. Concordo. Mas em algum momento tu dizes que ser feminista e ser primeira-dama são coisas que não combinam – o que é diferente, pois nesse caso a implicatura é que só há um modo de ser feminista, o que sabemos que é falso, e um modo de ser primeira-dama, igualmente falso (na mesma entrevista, as coisas que dizes da Micheque evidenciam isso, certo?)

Então, eu gostaria que a gente pudesse conversar sobre o que é o melhor sentido desse termo [feminista radical] que tu utilizas pra te descrever. Porque eu concordo contigo sobre precisarmos colocar as mulheres num outro patamar na política brasileira, na cultura, na história, em todos os lugares, mas no entanto não fico confortável com uma feminista tão vocal como tu diga à outra que, se fosse ela, tomaria uma atitude drástica, eu diria, vou cuidar da minha vida… e iria construir uma história com as mulheres brasileiras. Meu desconforto vem, primeiro, pelas razões lógico-gramaticais que apontei antes, mas depois porque dizer isso é sugerir, novamente por implicatura, que ela não está, como esta primeira-dama poderosa que ela já é, sendo um modelo (e um bom modelo, a meu ver) para as esposas do país. Nem que “ser uma grande mulher por trás de um grande homem” seja incompatível com uma postura feminista. Isso me toca muito pessoalmente, sabe Márcia… 

Sol na 4 guarda seus papéis de carta, pois sim.

Tu sabes que eu optei, e estou vivendo de acordo com esta opção há um tempinho, por estar no papel da mulher que apoia seu homem (cuida da maior parte das praticidades miúdas da vida, dedica tempo e disposição ao estabelecimento das melhores condições para que ele deixe frutificar todas as flores deu seu brilhante intelecto, apoia e critica como intelectual de capacidade equivalente…). E tenho certeza de que se tudo o que tu disseste sobre Janja/Primeira-Dama fosse endereçado a mim, uma esposa brasileira, à função que eu escolhi desempenhar (primeira-dama do meu lar), eu ficaria chateada. Eu sentiria como se tu estivesses invadindo um espaço de autonomia que eu levei anos pra habitar, e para o qual que os feminismos me empoderaram à beça, em especial porque me colocaram em contato com outras, e até em situação de amizade com uma das mais famosas feministas do Brasil – uma que diz que feminismo é o contrário da solidão.

Vamos, sim, querida, ressignificar os lugares das mulheres nesse país. Mas eu gostaria de fazer isso sem ser, e nem ver outras sendo alvo de condescendências das companheiras de caminhada. Os abutres estão por todo lado, a gente precisa ficar atenta aos seus estratagemas, arapucas e quetais.

Há revoluções e revoluções; muitas em potencial. Se elas parecerem se contradizer, como quando uma feminista se torna primeira-dama, bem, a gente tem todas as ferramentas para examinar cada caso, não generalizar nem homogeneizar as formas de vida feministas, e quem sabe até encontrar um modo paraconsistente de nos aceitarmos como somos – quer dizer, sem que possamos inferir n’importe quoi das contradições que encontrarmos no caminho.

Potências são como sementes. Elas precisam de cuidado pra não serem perdidas por causa da desatenção da jardineira (hoje mesmo eu aprendi que o ramo de arruda que colhi outro dia não vai me dar as sementes que eu queria, porque precisava de mais umas semanas antes da poda…)

Me conta o que sentes e pensas dessa partilha de ideias?

Um abraço bem apertado de saudades e sempiterna admiração,

Gisele

Claremont, 16 de maio de 2023.

As florzinhas das cebolas que plantei no início da primavera.

P.S.: Vê como é a Palas em Libra, conjunta ao Marte? Acho que é bem como a do Klimt.

Me aguentei contra os que te injustiçam, mas não contra o que percebo como alheio à (alguma) lógica.

Mas não se perca de mim, não desapareça

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