Uma carta para Márcia

Claremont, 15 de maio de 2023.

Márcia, querida

Já faz um tempinho que queria te escrever mais uma carta, depois daquela primeira que enviei há alguns meses, e hoje tu publicaste a carta aberta a Janja – que me comoveu. Então, retomo a conversa por meio desse meu blog empoeirado. Coisa boa que é mover as coisas, limpar, mudar tudo de lugar. Herdei o hábito de minha avó, da re-volta, refazenda da vida doméstica no gesto de trocar os móveis de lugar a cada pouco.

Tu sabes que eu te admiro as coragens e as fibras. 

Mas cada vez que novamente eu leio ou assisto as coisas que as pessoas (quase todos indivíduos machos da nossa espécie) dizem de ti, do que pensas e dizes, do teu fazer no mundo, aquele meu casal que vive na sete em Libra, Marte e Palas, se alvoroça por uma peleiazinha. E justamente porque agora vejo meu mapa povoado também pelas “asteróidas” (conversa pra outros dias: tínhamos que chamá-las “as planetas”!), não fiz mais do que postar hoje mais cedo, no Twitter, o link pro teu texto, incluindo um breve comentário:

Quer dizer, amiga, como se diz em gauchês, “me aguentei” pra não brigar por lógica.

Fiz almoço escutando notícias do Brasil, e comentários tipo: NOOOOSSSA, a familícia agiu como mi-LÍ-cia quando alcançou os picos do poder pelo qual sempre, e unicamente, trabalharam a vida toda! E eu ainda assisto? Pior que sim. E ainda uso o Twitter.

Depois do almoço jardinei um pouco e ainda fui comprar comidas; enquanto esperei minha carona no café-ao-lado-do-hortifruti, avancei mais umas páginas na lida com o livro do Shah. Sabedorias ancestrais a gente não despreza, né?

Voltei pra casa, transplantei umas mudas grandes de Artemísia da horta pro jardim da frente (as mudas que plantei no final do outono estão virando duas árvores, guria, uma das quais estava sufocando meus alhos e cebolas!), comi bergamota e só agora às seis da tarde é que sento pra te escrever. Quero te contar como eu leio o causo em questão – ou, melhor, como eu entendi o processo de criação desse causo – e com isso te convidar pra conversar, de amiga pra filósofa e vice-versa. Vamos?

A Maior Artemísia do Meu Jardim

Flor, tive de parar ontem porque deveres doméstico se impuseram. Agora são 11:09 do dia 16 de maio, e os mesmos deveres (mais a notícia de que meu cachorro está hospitalizado) me tomaram quase toda a manhã. Porque eu considero dever cuidar do meu jardim, que está cheio de cebolas florescendo e eu estava estudando como lidar com esse fenômeno. Aparentemente não terei cebolas este ano, mas muitas, muitas sementes para plantar quando for a época.

Então, de ontem pra hoje eu li mais um texto sobre o causo, da Laura Astrolabio, no Instagram. Mas como eu não pretendia falar sobre o ponto do texto dela (que é a legitimidade da existência mesma do cargo de Primeira-Dama), que é também parte do teu, não vou comentar. Não, pera, só uma coisinha: ela diz que tu falaste do cargo de Primeira-Dama em um texto, mas foi na entrevista ao UOL (e em outras), ou tu escreveste algo antes disso que eu não li? Seja como for, tu deves estar se perguntando: “Mas se não é sobre isso (a “função Primeira-Dama”), então sobre o que vamos conversar?” E eu te respondo que queria começar sublinhando o que me parecem ser algumas pressuposições de algumas das coisas que disseste na entrevista que provocou todo esse ti-ti-ti ridículo. É muita má-fé tomar o que tu disseste como indício de que estarias querendo “derrubar Janja” (não vou inserir hiperlinks pra isso, que não quero dar cliques pros canalhas). Pra ti, este é mais um capítulo da perseguição que vens sofrendo há anos, por gente de fora e de dentro do campo progressista, e que te levou ao exílio. Pra mim, que já te achei uma chata no passado e hoje entendo melhor de onde vinha essa impressão, hoje que te conheço pessoalmente e posso me dizer tua amiga, hoje que eu não tenho mais medo de ser considerada chata, este é um momento de compartilhar contigo meu modo de entender algumas discussões feministas.

Começo observando aqui o que disse no meu tweet, que a tua foi uma colocação hipotética, condicional. Dessas que qualquer uma que já tenha tentado ensinar lógica sabe bem como é difícil (cada vez mais difícil) transpor aos estudantes. Vou voltar a isso adiante. Por ora observo que se já não é fácil para muita gente entender uma afirmação condicionada pela outra (tipo “Se chover, então levo o guarda-chuva” – sendo que podes também levar se não chover, ou se não souber se vai ou não chover) – as coisas ficam mais complicadas quando se afirmam duas condições ou hipóteses antes de outra, como em “Se chover, e se estiver frio, então levo guarda-chuva.” E foi exatamente esta a tua resposta a uma pergunta da Milly Lacombe. Disseste “Se eu for bastante radical, e se eu fosse a Janja, [então] renunciava a esse cargo de primeira-dama e ia fazer alguma coisa realmente mais revolucionária”.

Vê, Márcia, todo o causo depende de uma leitura dessa tua afirmação, ou melhor, do modo como ela foi lida pelos editores do UOL (que escolheram a manchete Se quer revolução, renuncie ao posto de primeira-dama.). E, evidentemente, de como ela foi sendo relida e replicada em/por outros veículos – uns mais outros (bem) menos sérios. O que eu te proponho revisitar, de início, é a pergunta que te endereçou a Milly (cacoete filosófico meu, esse de não responder as perguntas antes de pensar nos termos em que ela foi feita, pra ver se não tem ali algum pressuposto problemático, com o qual não quero me comprometer, ou mesmo um intencional pega-ratona).

 Degravei, do trecho de vídeo selecionado pelos editores para abrir o texto:

A simples menção do nome “Janja” provoca uma loucura coletiva, né, e aí a gente mistura com misoginia, com machismo – a gente sabe o que a Dona Marisa passou, né, mas só que Janja vem aí com uma potência revolucionária, né. Eu escrevi um texto outro dia em que, assim, mulheres com libido e transantes incomodam muito mais, né. Como você tem visto o papel da Janja.. Que revolução ela pode ainda imprimir nessa função [de Primeira-Dama].

Agora, a tua resposta aceita sem discussão a premissa da Milly, de que há uma potência revolucionária na figura da Janja, como primeira-dama (tese com a qual eu concordaria, não é esse o ponto). Mais do que isso, a Milly deixa claro que essa potência se relaciona ao fato de Janja emanar uma energia de mulher transante, que expressa sua libido de um modo que perturba muito os humanos não ou pouco transantes desse mundo. O problema principal com a tua resposta, a meu ver, é que nela todas as palavras conectadas com a ideia de revolução não têm a mesma carga semântica a ela atribuída pela jornalista. O teu sentido de “revolucionário” se associa ao teu feminismo, radical, que até onde entendo ainda não discute questões de política da libido transante. Me engano?

UFRGS – Campus do Vale numa tardezinha qualquer

Ora, sabemos que Janja se considera e é considerada feminista. Sabemos (e tu muito mais e melhor do que eu) que os feminismos são múltiplos, variados histórica e socialmente, e por vezes até conflitam entre si – mas nunca no caroço, que é o mesmo: pleitear o reconhecimento e a reparação das inequidades que nos apagam, esmagam, oprimem e matam simbólica, financeira, espiritualmente, pra dizer bem pouco. A Janja, até onde eu sei, jamais se quis revolucionária. Das poucas entrevistas que eu vi dela, como a que ela concedeu para a Emissora em 13 de novembro de 2022 (você assistiu?), ela se diz uma sonhadora pé-no-chão que pensa em problemas importantes pro mundo e que agora está tendo a oportunidade de contribuir para algumas das mudanças que o Brasil e o mundo exigem. 

Ela é socióloga, né, trabalhou com questões de sustentabilidade das comunidades indígenas na região de Itaipú, e diz que considera que sua militância se fez muito mais no campo profissional do que no político. Eu estou trazendo esses elementos aqui pra gente não falar dela de forma caricatural, como os entrevistadores parecem ter te induzido a fazer, e vestir a Janja com o espartilho da posição inessencial e subalterna (tuas palavras) de primeira-dama. (Se e quando a gente for conversar sobre “o que é isso, ser uma primeira-dama?”, eu gostaria de estudar mais antes, tá?) Tudo o que eu tenho acompanhado das ações de nossa primeira-dama me mostra que é distorção demais falar dela, e da função dela, como a pessoa que ajuda o Lula a virar as páginas dos seus discursos. Sim, ela faz isso – porque oxalá faz o que quer – mas ela também se engaja sobremaneira nas questões políticas (tanto que é detestada por companheiros e companheiras de todas as querências). Mas, mais do que isso, e muito importantemente: ela não é uma feminista radical como tu. E, ainda assim, o potencial revolucionário dela como primeira-dama está na cara, amiga, é só acompanhar um pouco! Não existisse esse potencial, ela não seria alvo, como tu tantas vezes foste e ainda é, de tantas falsificações que a desenham como “muito metida”, “muito feminista”, “não sabe seu lugar” etc..

A tua reação ao que entendo como bait da jornalista foi a de primeiro tentar separar a Janja-pessoa da função ou cargo de primeira-dama, o que eu não objeto. Só que, a seguir, tu dizes que se ela, Janja, caso fizesse o que tu farias no lugar dela e renunciasse a seu cargo, daria um salto na cultura, um empuxo forte, né, ou melhor dizendo um impulso forte pra cultura feminista. (Teu ato-falho é importante, mas eu quero focar em outra coisa).

É que, minha cabeça de professora de lógica, essas tuas inferências são instâncias de fórmulas condicionais gerais como “eu, no teu lugar, faria x”, “eu, se fosse tu, não aceitaria y”, “eu, se fosse ela, daria uma pirueta naquela hora” – que eu considero como vícios de linguagem/pensamento daqueles que temos e nem sentimos. Mas eu não gosto de engolir sem mastigar, e fico feliz por ter a chance de, nessa carta, contar a ti e aos leitores do meu blog que há um tempo já eu penso assim: usar esse tipo de expressão não tem sentido lógico, pelo simples fato de que se eu fosse tu, eu seria tu, não eu e, assim, agiria exatamente como tu ages. E aqui a lógica e a gramática dão as mãos (tô aqui lembrando do capítulo do velho livro de Copi sobre as funções da linguagem, onde ele distingue funções lógicas e funções gramaticais da linguagem). Porque apesar dessas estruturas frasais parecerem expressões lógicas condicionais ou hipotéticas, o “se… então…” nelas não possuem função lógica, de amarração das condições de verdade do antecedente e do consequente (como eu sugeri no meu tweet), mas têm uma função modalizadora, quer dizer, são um artifício que quem as emprega utiliza para dar conselhos, ou mesmo ordens.  E é talvez por isso que a frase que os editorialistas escolheram pra manchete é o teu dito no modo imperativo. Quando eu a li pela primeira vez, pensei: garanto que distorceram o que a Márcia disse! Mas, infelizmente, esse não é o caso.

Porque a implicatura conversacional do teu dito é a de aconselhar a Janja, não a de discutir o que a função de primeira-dama representa. Se fosse isso, a conversa talvez não soasse condescendente como soou a tantos ouvidos – alguns dos quais são ouvidos de mentes sedentas por clique, como as que que te acusam de algum conluio contra a primeira-dama. O tom de que falo me ressoou forte quando disseste que, se fosses ela, iria cuidar da minha vida e fazer coisas muito revolucionárias. Mas, de novo, se tu fosses ela, não seria revolucionária! Depois, dizes:  

Quer fazer uma revolução? Larga disso; vai ter uma vida própria, vai pro seu trabalho… Sair do papel da esposa que apoia, eu acho que é importante pras esposas do Brasil. Então, se ela quer servir de exemplo, eu me proponho a fazer toda a assessoria (risos)…

(Chiste importante, penso eu, mas volto ao meu ponto.)

Ocorre que Janja não quer fazer revolução. Ou quer? Quem fala em potencial revolucionário é Milly Lacombe! Amiga, eu acho que caíste numa sorte de arapuca.

Independentemente disso, é obvio que eu posso te imaginar argumentando assim: Gisele, o que eu defendo é que não é possível ser uma feminista radical e uma primeira-dama, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, pra lembrar o Estagirita. Concordo. Mas em algum momento tu dizes que ser feminista e ser primeira-dama são coisas que não combinam – o que é diferente, pois nesse caso a implicatura é que só há um modo de ser feminista, o que sabemos que é falso, e um modo de ser primeira-dama, igualmente falso (na mesma entrevista, as coisas que dizes da Micheque evidenciam isso, certo?)

Então, eu gostaria que a gente pudesse conversar sobre o que é o melhor sentido desse termo [feminista radical] que tu utilizas pra te descrever. Porque eu concordo contigo sobre precisarmos colocar as mulheres num outro patamar na política brasileira, na cultura, na história, em todos os lugares, mas no entanto não fico confortável com uma feminista tão vocal como tu diga à outra que, se fosse ela, tomaria uma atitude drástica, eu diria, vou cuidar da minha vida… e iria construir uma história com as mulheres brasileiras. Meu desconforto vem, primeiro, pelas razões lógico-gramaticais que apontei antes, mas depois porque dizer isso é sugerir, novamente por implicatura, que ela não está, como esta primeira-dama poderosa que ela já é, sendo um modelo (e um bom modelo, a meu ver) para as esposas do país. Nem que “ser uma grande mulher por trás de um grande homem” seja incompatível com uma postura feminista. Isso me toca muito pessoalmente, sabe Márcia… 

Sol na 4 guarda seus papéis de carta, pois sim.

Tu sabes que eu optei, e estou vivendo de acordo com esta opção há um tempinho, por estar no papel da mulher que apoia seu homem (cuida da maior parte das praticidades miúdas da vida, dedica tempo e disposição ao estabelecimento das melhores condições para que ele deixe frutificar todas as flores deu seu brilhante intelecto, apoia e critica como intelectual de capacidade equivalente…). E tenho certeza de que se tudo o que tu disseste sobre Janja/Primeira-Dama fosse endereçado a mim, uma esposa brasileira, à função que eu escolhi desempenhar (primeira-dama do meu lar), eu ficaria chateada. Eu sentiria como se tu estivesses invadindo um espaço de autonomia que eu levei anos pra habitar, e para o qual que os feminismos me empoderaram à beça, em especial porque me colocaram em contato com outras, e até em situação de amizade com uma das mais famosas feministas do Brasil – uma que diz que feminismo é o contrário da solidão.

Vamos, sim, querida, ressignificar os lugares das mulheres nesse país. Mas eu gostaria de fazer isso sem ser, e nem ver outras sendo alvo de condescendências das companheiras de caminhada. Os abutres estão por todo lado, a gente precisa ficar atenta aos seus estratagemas, arapucas e quetais.

Há revoluções e revoluções; muitas em potencial. Se elas parecerem se contradizer, como quando uma feminista se torna primeira-dama, bem, a gente tem todas as ferramentas para examinar cada caso, não generalizar nem homogeneizar as formas de vida feministas, e quem sabe até encontrar um modo paraconsistente de nos aceitarmos como somos – quer dizer, sem que possamos inferir n’importe quoi das contradições que encontrarmos no caminho.

Potências são como sementes. Elas precisam de cuidado pra não serem perdidas por causa da desatenção da jardineira (hoje mesmo eu aprendi que o ramo de arruda que colhi outro dia não vai me dar as sementes que eu queria, porque precisava de mais umas semanas antes da poda…)

Me conta o que sentes e pensas dessa partilha de ideias?

Um abraço bem apertado de saudades e sempiterna admiração,

Gisele

Claremont, 16 de maio de 2023.

As florzinhas das cebolas que plantei no início da primavera.

P.S.: Vê como é a Palas em Libra, conjunta ao Marte? Acho que é bem como a do Klimt.

Me aguentei contra os que te injustiçam, mas não contra o que percebo como alheio à (alguma) lógica.

Mas não se perca de mim, não desapareça

Resposta a uma Coluna ANPOF

No dia 11/05/2023, o colega de profissão Luís Fernando Crespo teve pulicado, na aba “Coluna ANPOF” do website de nossa Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia, o texto “A falácia da dificuldade da matemática”.

Escrevi a carta abaixo como uma resposta. Como ela tem o dobro do tamanho limite dos textos a serem publicados como colunas, estou retomando as atividades do blog para publica-la.

(Outra razão para publicar a carta aqui é que posso inserir hiperlinks.)

Carta-resposta a Luís Fernando Crespo

por Gisele Secco

Oi Luís Fernando

A gente não se conhece. Me chamo Gisele, sou professora do departamento de filosofia da Universidade Federal de Santa Maria, no momento usufruindo de uma licença não-remunerada e vivendo fora do Brasil. Acabo de ler sua manifestação na coluna ANPOF de 11 de maio de 2023 e resolvi escrever no estilo démodé de interação filosófica que aprecio tanto, a carta. Em Humano demasiado humano, Nitzsche afirma que o diálogo, assim como a troca epistolar, é a “conversa perfeita”, pois nessas interações “tudo o que uma pessoa diz recebe sua cor definida, seu tom, seu gesto de acompanhamento, em estrita referência àquele com quem fala.” A gente não se conhece, e é por isso que inicio esta carta justificando a resolução de escrever uma carta, que apesar de pública é endereçada a você (ou vice-versa?). A gente não se conhece, e isso me desafia a encontrar a cor e o tom adequados a este desconhecimento, mas sem desrespeitar o sentimento de obrigação que de imediato se me acometeu, de reagir ao teu escrito.

É que, desde o lugar de onde eu leio as tuas considerações (ah: não leve a mal a alternância de tratamento, entre “você” e “tu”; não é desrespeito, mas coisa de gaúcha), elas me soam estranhas, de diferentes maneiras. Vou, então, tentar te contar as razões de meu estranhamento, te fazer algumas perguntas e me colocar à disposição para seguirmos a conversa – se ela for sobre critérios de organização curricular no contexto da educação escolar e, em especial, sobre os papéis da filosofia e da matemática neste contexto.

 

Esse condicional se relaciona com meu primeiro estranhamento, porque você começa anunciando seu lugar, ao lado da filosofia e das demais disciplinas preteridas “em número de aulas, seja na importância dada dentro do conjunto.” Do conjunto do currículo escolar, é de se presumir. Tua leitora, então, infere que o tema do texto é a questão da distribuição/hierarquização das disciplinas nos currículos, o que fica evidente quando anuncias o teu segundo ponto, que eu não entendi. Explico: acabaste de nos informar que o tema do texto é de natureza curricular, mas de imediato nos dizes que uma das disciplinas do currículo, a matemática, é tão importante quanto as demais porque do contrário estarias reproduzindo algo da ordem social mais ampla, ou seja, relações entre opressores e oprimidos. Estás sugerindo, portanto, uma analogia entre componentes curriculares e indivíduos (ou grupos de indivíduos) em interações sociais “em geral” – analogia que se faz explícita no teu terceiro ponto, pelo qual localizas a matemática num espaço curricular de opressão, como opressora. Mas eu falho em ver a plausibilidade da analogia, porque você não explicita em que sentido uma disciplina (ou componente curricular) pode ser opressora do mesmo modo que pessoas ou instituições. Parece que você está pressupondo o mesmo que a Andrea Nye quando, em seu livro de 1990, ela inaugura uma tradição de críticas feministas à lógica, quer dizer, que a um gênero de conhecimento – que se manifesta como know-how ou habilidade na vida comum, mas se cristaliza como campo teórico no ambiente acadêmico, como é o caso de lógica e matemática – podemos atribuir as mesmas qualidades que atribuímos a pessoas, instituições, sociedades. O meu primeiro estranhamento, em resumo, é: esta analogia precisa ser detalhada, sob pena de confusão entre tipos ou modalidades de conhecimento, suas interações, e as dinâmicas sociais nas quais estes saberes são transmitidos, ensinados e aprendidos. Do contrário, a leitora não entende qual é o assunto do teu texto.

 

Uma disciplina formal, simbólica, como o são a lógica e a matemática, não é e nem pode ser opressora ou liberal em e por si mesma, seja em sua dimensão teórica ou prática. Por “prático” quero dizer, por exemplo, saber calcular a porcentagem dos juros que pagamos quando deixamos atrasar um boleto ou saber inferir de “todo político é corrupto” e “Maria do Rosário é uma política” que “Maria do Rosário é corrupta” – mesmo que ela não o seja de fato). E por “teórico” o saber enunciar os algoritmos usados para calcular porcentagens ou o saber que se um indivíduo faz parte de um grupo do qual se predica uma qualidade, podemos dizer dele que possui esta qualidade, independentemente de qual seja a qualidade ou de quem seja o indivíduo. Essa independência é o que a gente, quando ensina lógica, chama de caráter formal das inferências, e este caráter é o que permite que ambas, lógica e matemática, tenham uma aplicabilidade quase universal. Assim, disciplinas formais não são entidades dotadas de intencionalidade ou ideologia, como são pessoas, grupos, instituições. Nem à lógica (como queria a Nye) nem à matemática, como você parece querer, faz sentido atribuir características demasiado humanas. O alvo a ser acertado não é a disciplina, mas seus praticantes.

 

Mas quem são os praticantes de matemática e filosofia nas escolas, senão os professores e professoras? “Ah”, tu poderias objetar, “mas eu não estou me referindo aos colegas que lecionam na escola, estou falando doe quem elabora documentos que determinam arranjos curriculares (a nível nacional, estadual etc..) e dos gestores e gestoras que, ao fim e ao cabo, tomas decisões baseados nas hierarquias disciplinares típicas do senso comum.” Ao que eu responderia: ótimo! Então vamos falar sobre quais aspectos das práticas desses atores evidenciam a ligação entre suas preferências ideológicas e suas ações no campo dos estudos e políticas curriculares. Tem um bocado de gente séria que se dedica a trabalhar esses tópicos, e tem a realidade, sim, batendo à porta dos milhares de licenciados em filosofia e humanidades e dizendo “Não há vagas”. Mas a questão aqui é política, em vários sentidos, muitos deles implicados no seu texto sem nitidez sobre como se relacionam. Vou dar um exemplo:

Você afirma que “a nossa sociedade” valoriza sobremaneira a matemática, considerando-a útil por causa do tipo de raciocínio que ela ensina. A qual tipo de raciocínio você se refere: dedutivo, por analogia, por indução, raciocínios por redução ao absurdo? Pergunto porque, tendo tido a alegria de, durante anos, formar professores de filosofia, biologia, química, língua portuguesa, física e matemática, tive a chance de ler e discutir com eles inúmeros documentos oficiais nos quais se detalham os diversos tipos de raciocínio implicados em cada uma delas, bem como de descobrir diversas maneiras de utilizar as mesmas ferramentas lógico-matemáticas nos diferentes contextos disciplinares, de acordo com as particularidades de cada uma delas e as potencialidades interdisciplinares que revelam. Mas ainda que o seu texto não especifique a natureza “deste tal raciocínio” exigido pela matemática, eu consigo concordar com a sua ideia de que modos matemáticos de raciocinar não são ensinados apenas pela matemática como componente curricular (do contrário, como poderíamos explicar a aplicabilidade desses modos de raciocínio às demais ciências, não é mesmo?). Agora, quanto à alegação de que “a filosofia poderia dar conta” desses raciocínios “se pensarmos a matemática como um ramo da lógica”, meus estranhamentos mudam de figura.

 

Porque agora você está condensando, em uma breve e incidental frase, milênios de discussão. Sem exagero: as relações entre lógica, matemática e filosofia são tão atávicas quanto complexas (e a meu ver fascinantes), tão historicamente emaranhadas e em tantos contextos distintos (desde a China antiga, passando pela Mesopotâmia, pela Índia e pela África, antes de chegar ao mediterrâneo onde essas disciplinas, tais como as conhecemos “nasceram”), que meus escrúpulos historiográficos não me permitem consentir com o seu pressuposto fregiano. A redutibilidade da matemática à lógica, você deve se lembrar, foi uma vez, por obra de Frege, o carro chefe dos programas de fundamentação da matemática, programas cujas consequências indiretas até têm a ver com um modelo de pedagogia matemática com razão bastante criticado, e que hoje em dia felizmente vai sendo remodelado em favor de um ensino menos atrelado à teoria dos conjuntos e mais afeito às práticas de cálculo, raciocínio e provas que incluem recursos tão distintos quanto representações visuais, tácteis e diagramáticas de toda sorte, ferramentas de programação etc.. Desculpa, Luís Fernando, eu me comovo com esses tópicos e acabo me desviando do ponto. Estou começando a perceber, conforme escrevo e releio o teu texto, que o meu ponto principal é mesmo o teu uso de analogias. Vamos ver.

 

Entre os parágrafos três e quatro tu argumentas por meio de uma comparação entre filosofia e matemática, em especial seus “conteúdos”. É verdade que você não usa essa palavra, mas sugere que se trata disso quando fala do treinamento dos estudantes na prática de “resolução de matrizes determinantes” e compara esse aprendizado (que você mesmo reconhece necessitar de muito exercício) com um correspondente filosófico, qual seja, “todo o idealismo alemão”. Novamente, falho em ver o que há de relevante entre os dois casos como para manter a analogia de pé: primeiro porque entre aprender a resolver matrizes e receber uma explicação de todo o idealismo alemão não parece haver correspondência alguma. Num caso, o matemático, estamos falando de um saber-fazer, uma habilidade que se aprende por meio da repetida manipulação de símbolos de acordo com regras de transformação e substituição dos mesmos. No outro, o filosófico, estamos falando de um saber-que, um conhecimento “histórico” que você parece sugerir que só é bem apreendido quando o estudante o entende “por dentro”. Pois, novamente: a não ser que você explicite em que sentido as habilidades exigidas para fazer história da filosofia alemã são similares às habilidades demandadas para a resolução de matrizes, a analogia falha e, com ela, a força de teus argumentos em defesa da filosofia no currículo escolar.

 

Nota bene: eu mesma aposto na existência de conexões incrivelmente potentes a serem feitas entre as didáticas da história, da filosofia e da matemática, e opino que elas são obliteradas justamente pelo tipo de argumento que você apresenta. Tudo se passa, de acordo com sua mensagem, como se fosse legítimo discutir questões de chão de escola, como a distribuição de carga horária por disciplina, com base em considerações sobre o valor destas disciplinas para a sociedade, mas sem que se nos sejam oferecidos elementos relevantes, vindos da realidade, como por exemplo, os solavancos da aprovação da BNCC, a imposição autoritária da reforma do ensino médio e os efeitos disso nos estados, municípios e escolas. Mas mais do que isso, as lentes (heideggerianas, talvez) com as quais você sugere compreender a matemática como disciplina escolar me parecem ser inadequadas para compreender o que seja a matemática como campo do conhecimento. E esta distinção, entre as disciplinas escolares e os campos de saber e pesquisa acadêmica que lhes correspondem, é o marco zero de qualquer bom debate sobre como organizar os currículos escolares. Nova nota bene: mesmo que eu não me sinta confortável em entrar no mérito da perspectiva de Heidegger sobre as ciências formais, preciso te dizer que a ideia de que “O objeto matemático não toca o ser humano em sua humanidade” é extremamente contenciosa, e a meu ver só serve para engrossar o caldo discursivo cuja consequência nefasta acaba sendo a eliminação da matemática dos currículos de escolas públicas, enquanto nos das privadas os alunos não só aprendem matemática como programação – essa coisa tão perigosa de aprender que, no nosso dia-a-dia, vive guardada dentro das licenças de software proprietário, pelas quais a maioria de nós paga sem sentir. Há perigos e perigos.

 

Quando você enfim nos conta o que significa “compreender ideias por dentro”, então, fica muito evidente pra mim que, ao contrário do que você talvez desejasse, as analogias entre práticas matemáticas e filosóficas que você oferece servem pra contestar o que você quer provar. Senão, vejamos. Você diz: “Compreender as ideias ‘por dentro’ implica tentar enxergar aquilo que os pensadores enxergaram e que os motivou à reflexão.” Em que mundo isso não é exatamente o que se passa nas boas aulas de matemática, nas quais se trata de fazer os estudantes verem o mesmo que os matemáticos viram quando tentaram resolver um problema (tipo aquele da duplicação do quadrado que Sócrates propõe a Mênon, lembra?)? E deixar que os alunos experimentem soluções, e fracassem, e tentem novamente, coletiva e colaborativamente, até chegar a uma solução? Qual seria a diferença essencial entre esse proceder didático-pedagógico e o proceder socrático, dialógico, que a todos nos inspira como modelo de professor?

 

Bem, a conversa já está muito longa e eu preciso terminar. Hoje vou encontrar uns amigos, um grupo de matemáticos, filósofos e computeiros com quem temos um seminário de história e filosofia da lógica e da matemática. Lá, quando um desavisado começa com essa estória do que é a base do quê, ou sobre a suposta inutilidade da fórmula de Bhaskara para as crianças na escola, a gente filosófica respira e pergunta: base lógica, sociológica, histórica ou pedagógica? E seguimos pensando em como articular nossos saberes de modo que uns às outras se entendam, cada um na sua, mas com muitas coisas em comum.

 

A gente não se conhece, mas espero que possamos seguir conversando.

 

Cordiais saudações,

 

Gisele

 

Claremont, 12 de maio de 2023.

 

P.S.: Você poderia explicar a escolha do título do seu texto? Não vi referência nem à “falácia”, nem vi discussão sobre a dificuldade da matemática…

Que lugar é esse, o da filosofia?

Começa amanhã no Departamento de Filosofia da UFSM o Encontro Regional da Residência Pedagógica em Filosofia, organizado pelas colegas Mitieli Seixas (UFSM), Priscilla Spinelli (UFRGS) e pelo colega Márico Cenci (UFN).

Segue o cartaz com a programação – farei uma palestra à noite, intitulada “Interdisciplinaridade como projeto escolar: os papeis da Filosofia”.

Vai ser ótimo estar com colegas e estudantes falando das experiências desse tão polêmico projeto de formação de professores, do qual certamente sentiremos saudades num futuro nada distante.

Será também uma sorte de despedida para mim, pois estou a caminho da França para um período de ano sabático.

Sobre mais um passo num longo caminho

Hoje aconteceu a mesa redonda que anunciei aqui.

Foram quase quatro horas de conversa boa sobre problemas de gênero no cotidiano da vida acadêmica, tanto no que diz respeito a questões comportamentais que precisam ser revistas, principalmente por parte de professores, quanto sobre questões de escolhas didáticas, de metodologias filosóficas, metafilosofia, reescrita do cânone, abordagens interdisciplinares de gênero e feminismo, temas transversais.

A Professora Janyne Sattler iniciou os trabalhos com uma fala intitulada “Motim”, em que ela contou um pouco da sua trajetória pessoal e intelectual em torno das questões de gênero e feminismo, destacou seu interesse pelas novas narrativas em filosofia, a discussão sobre modos de escrita filosófica, a intersecção das pautas feministas, anticapitalistas e antiespecistas, falou da necessidade de termos “paciência revolucionária” para lidar com a misoginia nossa de cada dia, bem como de entendimento partilhado sobre o que se nos ocorre.

Depois eu falei usando os slides de que falei aqui. Com a autorização da autora (Katarina Peixoto), usei a imagem da Hidra da Misoginia para ilustrar a miríade de problemas que precisamos entender e dissolver (a wittgensteiniana em mim não consegue pensar em outros termos).

Juliana Missagia e Mitieli Seixas apontaram caminhos de ação para pensarmos nas mudanças de práticas didáticas e de pesquisa. Juliana enfatizou os desafios institucionais envolvidos na mudança de perspectiva de pesquisa na direção de temas relacionados a gênero e feminismo, enquanto Mitieli, após uma descrição de seu despertar do longo sono dogmático em que vivia sem o feminismo em sua vida acadêmica, manifestou algum desconforto com a inserção algo artificial de autoras em cursos (especificamente os de história da filosofia moderna, sua área de especialidade), dando exemplos de como nem sempre é tranquilo simplesmente inserir mulheres filósofas nos planejamentos de disciplinas.

Katarina Peixoto autorizou que eu utilizasse a imagem acima,
que ela usou em sua palestra na Libori Summer School de 2019.

Deixo a apresentação para download e termino contando que a conversa que se seguiu foi, espero, educativa para todos os presentes.

É preciso dizer que temos aprendido muito com nossas estudantes, e que nos alegra e empodera esse movimento que estamos fazendo, por força delas.

Nossas alunas demandam e merecem melhor tratamento, nosso alunos desejam e merecem ser reeducados em um ambiente em que também os professores se reformulem enquanto professores de uma geração que é muito mais perceptiva e não aceita mais comportamentos e didáticas canonizados por padrões misóginos, racistas e classistas. Nós merecemos espaço para as pesquisas e experimentações didáticas que contemplem a inclusão de mulheres, povos negros, não-ocidentais, LGBTQI, na história da filosofia. Vamos explorar novas narrativas, métodos e estilos, diversificação em nossas práticas de pesquisa, ensino e extensão. Os ciclos que vêm tem como para ser virtuosos.

Afinal, quão boa pode ser uma filosofia senão previr abertura para a revisão de crenças e costumes bem assentados em nossas vidas?

Há muito a ser feito. Há ganas de tudo melhorar. Os tempos são pesados. Mas quero acreditar que juntas e juntos (“o feminismo é para todos“, ensina bell hooks) nos fortalecemos para lidar com a nefasta Hidra.

E desmedrar-lhe algumas cabeças.

Preparação, links

Informei no último post sobre o evento que estamos organizando na tarde da próxima sexta-feira, dia 18 de outubro, no Departamento de Filosofia da UFSM.

Preparando a minha intervenção há alguns dias – selecionando trechos de livros de Rita Segato (a segunda edição), Naomi Scheman, Heloísa Buarque de Holanda, Joice Berth, e trechos de artigos de Carolina Araújo, Ana Miriam Wuensch, dentre outras – me ocorreu coletar as “notícias da (minha) semana”: as que chegaram via redes sociais (não as da Bolha Azul, onde não mais me desgasto), blogs e sites que sigo e visito. A ordem é cronológica, conforme fui lendo e salvando nos favoritos:

Uma coluna de opinião no NYT, escrita por Ruth Whippman, sobre razões para mulheres deixarmos de forçar comportamentos “mascu” e, inversamente, propormos que os homens sejam mais como nós – em ou sob alguns aspectos, claro.

Descobri o GeCo – GenderConsulting for Research Alliances, uma baita iniciativa da Universidade Von Humboldt em Berlim.

Um excelente texto introdutório, no Universa, sobre Angela Davis, “Muito mais que feminista“.

Um texto publicado ainda hoje no Geledés sobre a presença de mulheres nas presidências de empresa no Brasil.

La ciencia también arrastra sus mitos“, texto publicado em 2015 no Mujeres con Ciencia, discutindo a centralidade masculina ao longo da evolução humana.

Um texto publicado na Folha de São Paulo, divulgando uma pesquisa realizada pela Sogesp, no qual um pressuposto incômodo (pra dizer o mínimo) permeia toda a transmissão das informações: o de que as adolescentes engravidam sozinhas!

Não diretamente relacionado ao que pretendo dizer na sexta para abrirmos um diálogo com as demais participantes da mesa, deixo dois links com postagens no Daily Nous: um sobre sobre o potencial dos aplicativos filosóficos (Será que rola desenvolver um app pra conhecer filósofas?) e outro sobre videogames como ferramenta didático-filosófica.

Por fim, mas nada menos importante, finalmente nossa instituição desovou uma campanha pelo fim dos assédios na Universidade.

Lembrando que chantagens ocorrem de múltiplas maneiras e que conversas indesejadas são difíceis de identificar “de cara”. Muitas vezes a gente só se dá conta quando a coisa já está passando dos limites – e os limites, para muitos, são bem largos…

P.S.: Desde que fiz esse post hoje à tarde mudei de ideia sobre a arquitetura das informações que vou transmitir na sexta. Estou montando uma apresentação de slides que possibilite uma fala mais dinâmica, costuradando o que quero dizer com as falas de Juliana e Mitieli; modifiquei maior parte dos links que serão fornecidos no slide final, me diverti desenhando os slides (como sempre) e ainda encontrei esse post do blog da APA, escrito por Lauren Guilmette, sobre o uso do Feminist Theory Archive.

Filosofias, Gêneros, Transversalidades

O Departamento de Filosofia da UFSM tem uma história interessante, marcada dentre outros detalhes pela baixíssima presença de mulheres em seu quadro docente (eu, que aqui estudei de 2000 a 2006 – licenciatura e mestrado – só tive uma professora, substituta, no último semestre, e algumas professoras de disciplinas de outros cursos. Com destaque para aquela que interpretou o sonho de Freud, a Maravilhosa Marilu).

Na semana que vem (sexta-feira, dia 18 de outubro) faremos – Juliana Misssagia, Mitieli Seixas e eu, as atuais professoras da casa – uma mesa redonda com a ex-colega de Departamento Janyne Satler, agora professora na UFSC. Tanto pra assuntar, filosófica e didaticamente.

Vamos?

 

Porque nosso levante não tem volta.

Que lugar é esse, o da filosofia?

Ocorre nos dias 04 e 05 de novembro, no Departamento de Filosofia da UFSM, o Encontro Regional da Residência Pedagógica em Filosofia, organizado pelos colegas de Mitieli Seixa (UFSM), Priscilla SSpinelli (UFRGS) e Marcio Paulo Cenci (UFN).

Estão abertas das inscrições para comunicações e pôsters, conforme o cartaz abaixo.

Vamos lá?

Mais uma aula de Prática em Filosofia na UFSM

Como contei na postagem da semana passada, esta semana a aula de Prática em Filosofia seria dedicada a um trabalho mais prático, como uma oficina de trabalho.

Mas como ainda era preciso esclarecer alguns pontos conceitualmente importantes – em especial oferecer mais elementos introdutórios da Teoria das Situações Didáticas pensada no contexto do ensino de filosofia, a primeira parte da aula foi dedicada a isso. Não sem antes uma conversa – talvez não tão longa quanto deveria (?) – sobre a atual conjuntura de mobilizações em torno da defesa da educação pública no país.

Em nossa Universidade, dois dias antes, em assembleia unificada, foi deliberado um indicativo de greve por tempo indeterminado a partir do dia 02 de outubro, um tanto a contrapelo das demais instituições de ensino superior brasileiras, que estão se mobilizando-se atos para os dias 02 e 03 de outubro, mas sem necessariamente apontar para a estratégia grevista de sempre. Na conversa com meus estudantes ficou claro que as tensões e abordagens são de níveis distintos nas diferentes categorias, e a partir dessa conversa (e de outras, com alguns colegas), organizamos uma Reunião Geral da Filosofia, a ocorrer amanhã, para nos entendermos melhor sobre nossas posturas de pensamento e ação diante do perigo que se vê na esquina.

O enlace dessa conversa com os temas da aula não foi difícil de realizar, na medida em que um dos pontos tematizados foi o seguinte: como as filósofas e filósofos podem, enquanto filósofas e filósofos, contribuir em atos de natureza estritamente política como as mobilizações que estão sendo construídas? Como podemos, se é que podemos, como estudantes e professores de filosofia, participar da defesa da educação pública no país sem deixar de lado nossos mais característicos traços existenciais? E como fica isso tudo em contextos de sala de aula?

Essas perguntas, por sua vez, possibilitaram a sequência da introdução à Teoria das Situações Didáticas, para o que me utilizei parcialmente do capítulo cinco de Ensino de filosofia e currículo (“A Teoria dos Campos Conceituais e a Didática da Filosofia”) e o capítulo sete dos Elementos de Didática da Matemática (“O triângulo: professor, aluno, saber. Transposição didática. Teoria das Situações Didáticas”). Para pensar na aplicabilidade de elementos da teoria ao contexto de ensino de filosofia vali-me também da ideia de contextos da escola tal como apresentada nesses slides da palestra que o Prof. Rocha proferiu no FORPROF Filosofia UFRGS e registrada em texto no primeiro capítulo do primeiro volume dos Diálogos com a escola: experiências em formação continuada em Filosofia na UFRGS.

Para dar exemplos de aplicação dessas ideias na prática de aulas de filosofia, contei aos estudantes a experiência do Matheus Penafiel com Literatura, Lógica, Filosofia, Amor, Amizad e Platão, que começa a ser relatada nesse post de seu blog (já devo ter recomendado, mas faço de novo: visitem os relatos de aula de Penafiel, são agradáveis de ler e muito inspiradores).

Na segunda parte da aula disponibilizei aos estudantes diversos materiais, didáticos e paradidáticos, de filosofia e de outras áreas, algumas cópias da atual BNCC do Ensino Médio, o Referencial Curricular de Filosofia do RS, a apostila de lógica e argumentação que Nastassja Pugliese confeccionou para o WFE de 2014, excertos da introdução do livro de Perrenoud sobre as competências para ensinar, e participei de seu brainstorming para a confecção dos desenhos iniciais dos planos de sequências didáticas.

É que trabalho final do curso será um dossiê contendo a apresentação de uma sequência de 4 a 6 aulas de filosofia para o ensino médio, com amarrações interdisciplinares, levando em conta o arcabouço teórico que estamos discutindo sobre os temas, as expectativas e experiências de cada um como professores (pelo menos três alunos da turma de oito lecionam em pré-vestibulares populares da cidade): planos de sequência plus arrazoado teórico, portanto, que serão discutidos com a turma em seminários a partir do dia 10 de outubro – e para os quais também forneci, via Moodle do curso, exemplos de trabalhos de ex-alunos da UFRGS. Pelo que conversei individualmente como cada estudante, coisas muito boas serão propostas, amarrando: filosofia e esportes (temas de ética), filosofia e artes (temas de estética), filosofia biologia (temas de fenomenologia e ética, também de ética aplicada), filosofia e história, geografia e sociologia (temas de filosofia política, ética, filosofia da religião).

Esta semana será cheia em nosso Departamento:

  • como contei, amanhã temos a reunião geral, logo depois da segunda etapa do Workshop de Ensino de Filosofia, sobre Democracia e Participação – uma promoção da Residência Pedagógica da UFSM, projeto coordenado pela colega Mitieli Seixas;
  • quarta, dia 02, temos uma roda de conversa com as mulheres (professoras e estudantes) para juntas enfrentarmos a hidra da misoginia (nas palavras de Katarina Peixoto);
  • quarta e quinta são dias de mobilização;
  • e sexta ainda tem uma palestra do Professor Marcos Silva sobre a normatividade da lógica nas empreitadas revisionistas, desde uma perspectiva pragmática.

FAF 1026 – Prática em Filosofia

Inicialmente esta seria uma postagem destinada somente aos alunos matriculados na disciplina FAF 1026 – Prática em Filosofia, que estou lecionando no curso de Licenciatura em Filosofia da UFSM neste segundo semestre de 2019. Quando terminei a lista de notícias e outros links relevantes que vou mostrar aos estudantes amanhã, pensei que talvez ela pudesse interessar a outras nove pessoas, e servir para não deixar este blog tão esquecido quando anda.

Esta é a segunda vez que leciono o curso de Prática em Filosofia. A primeira foi em 2007, quando era professora substituta no meu atual Departamento. Aquela foi a primeira vez que alguém diferente do Prof. Ronai estava assumindo esta disciplina – que se situa no sétimo semestre do nosso atual currículo (ou seja a versão de 2004, em vias de ser modificado). Aliás, para quem quiser se informar sobre a história das reformas curriculares do nosso curso, o Prof. Ronai, que nele lecionou por 44 anos, escreveu um belo exercício de memória, que se pode ler aqui.

Conforme a ementa, os objetivos da disciplina de Prática em Filosofia consistem em “Identificar elementos de natureza filosófica presentes em diversos contextos teóricos e culturais, bem como elaborar e avaliar problemas e respostas filosóficas, contextualizadas no universo de referência da Filosofia.”

(O programa do curso para 2019/2 pode ser acessado aqui.)

A postagem que eu pensava em fazer no Moodle da turma se situa no seguinte contexto: estamos na sétima semana letiva do semestre, trabalhando tópicos de introdução à didática da filosofia por meio da leitura e da discussão de alguns textos (“As funções de um professor”, de B. Russell – na tradução da Prof.Olga Pombo; “A didática na disciplina de filosofia””, do Prof. Rocha, bem como os capítulos 1, 2, 4 e 7 de Ensino de filosofia e currículo e “Epistemologia da interdisciplinaridade”, da Prof.Pombo).

Na aula passada, após alguns comentários finais sobre o texto de Russell (em especial quanto ao tópico da neutralidade partidária em sala de aula que nosso ofício exige, para o que sugeri como leitura complementar esse texto), explorei com a turma algumas das principais ideias constantes no artigo do Prof. Ronai:

  • o paralelo entre o planejamento e a execução de uma aula de filosofia e a escrita de um roteiro e da montagem de um filme;
  • a ideia de que uma boa aula de filosofia é, em realidade “três aulas dentro de uma” (uma focada nos conceitos e problemas relacionados ao mundo vivido; outra focada no instrumental necessário para abordar esses conceitos e problemas e outra direcionadas para o arcabouço histórico ou textual da filosofia);
  • bem como as similaridades e diferenças dessa ideia com a metodologia de ensino de filosofia proposta por Sílvio Gallo em seus quatro passos.

Vale destacar que, como tarefa , os estudantes haviam realizado um trabalho dissertativo de reconstrução dos argumentos e comparação entre as abordagens de Russell e Rocha. A leitura desses pequenos exercícios dissertativos me levou a fazer escolhas didáticas específicas para a aula em questão.

Na segunda parte da aula, optei por mostrar a aplicabilidade da sugestão do Prof. Ronai através de exemplos de práticas didáticas nas quais o papel articulador da lógica como instrumento de prática filosófica é fulcral. Também como uma forma de prestar contas da minha ausência na semana anterior, apresentei o trabalho que expus na na Universidade Nacional do Litoral (Santa Fe, Argentina) no dia 04 de setembro. Trata-se de uma versão melhorada da apresentação que fiz em Paderborn, na Libori Summer School – Teaching Women Philosophers, e nas quais se condensam trabalhos em andamento com minha colega e amiga Nastassja Pugliese, professora na Faculdade de Educação da UFRJ.

Em dois tempos: o trabalho consiste em argumentar em favor do ensino de lógica como ferramenta de empoderamento intelectual dos estudantes – tanto individual com coletivamente – na medida em que as propriedades formais da lógica permitem a exploração de temáticas mui variadas, e em especial de interesse dos adolescentes, tais como as relações de gênero e poder, tema feminista por excelência.

A lógica em sentido amplo é o que utilizamos
“cuando razonamos, asimilamos o procesamos la información que recibimos del entorno, cualquier tipo de información.
(Somos lógicos porque somos seres humanos.)”
(Manzano & Huertas 2004)

De outra parte, ao apresentar exemplos concretos em favor de nossa tese, também mostramos como uma certa perspectiva feminista sobre a lógica, apesar de problemática do ponto de vista histórico-metodológico, acaba por fornecer ainda mais água pro moinho da didática mínima da lógica, pois a crítica daquela abordagem nos permite mostrar como aprender lógica (em sentido amplo e um sentido estrito) é um requisito indispensável para que discutamos com mais propriedade as questões relacionadas à reconstrução do cânone filosófico desde perspectivas historicamente desfavorecidas, obnubiladas, silenciadas, como as perspectivas das mulheres ou quaisquer grupos étnicos ou sociais considerados “não-ocidentais”.

O estrito caroço dessa segunda parte da aula consistiu menos na discussão da posição de Nye contra a lógica e mais na apresentação dos detalhes de dois exemplos de práticas didáticas que ocorreram na licenciatura da UFRGS, vivenciadas por três alunas. Estas experiências podem ser conhecidas por meio do texto que Márcia Laux e Rafaela Nunes publicaram no livro Lógica, argumenteción y pensamiento crítico. Alcances, relaciones y aplicaciones. (O texto pode ser baixado aqui), e do Trabalho de Conclusão de Curso de Bruna Dietrich, acessível aqui. São duas experiências de ensino de lógica envolvendo o que Nastassja e eu estamos provisoriamente chamando de “semântica feminista”.

“As três aulas dentro de uma”

Na aula de amanhã nós vamos aprofundar um pouco mais a discussão sobre a transversalidade dos conceitos filosóficos e as potenciais interações da filosofia e seus eixos com as demais disciplinas escolares, com exemplos de práticas realizadas no PIBID Interdisciplinar UFRGS Campus do Vale.

Mas bem, e a tal lista de links?

Ela foi pensada simplesmente como um apanhado de notícias e informações a serem levadas em conta não tanto na aula de amanhã, mas na aula do dia 26 de setembro, quando realizaremos uma oficina sobre planejamento de aulas de filosofia em suas interfaces disciplinares (no contexto do Ensino Médio).

Abaixo, os links que podes servir para a oficina de Prática em Filosofia (e para algum leitor do blog):

Um bom e velho (atual) tema filosófico retomado em texto publicado na Folha de São Paulono dia 11 de agosto ‘Equiparar ciência a opinião atende a interesses e destrói conhecimento‘ (Ah, o Mênon…)

Um texto sobre a importância da ciência para a construção de políticas públicas, no Nexo.

Uma lista de cinco livros indispensáveis para quem se interessa por feminismo hoje no Brasil, recomendados pela filósofa Carla Rodrigues, também no Nexo.

Um exercício de reconstrução da linha filosófica do tempo (histórico) com mulheres, no blog da Oxford University Press.

Uma postagem no Philosophers Coccon sobre novas práticas de ensino de filosofia.

Um texto (meio óbvio?) publicado na The Philosophers Magazine, “Doing Philosophy as Teaching Philosophy

Outro link para a FSP, desta vez explicando as razões para a comemoração dos cem anos da Tabela Periódica dos Elementos em 2019.

Um texto publicado no site da BBC Brasil sobre a fascinante Fita de Möbius.

Sobre o choque e o horror (!) quanto tempo passamos em nossos telefones diariamente, no Guardian.

Uma introdução à Africana Philosophy, no History Philosophy Without any Gaps.

Pensar Nagô, (que também e título do livro) de Muniz Sodré.

4 em cada 10 jovens negros não terminaram o ensino médio– Publicado na FSP em 01 de setembro.

Enquanto isso, na Irlanda.

Livro Interações de gênero nas salas de aula da Faculdade de Direito da USP: um currículo oculto?– UNESCO Digital Library.

“Cómo alentar a las niñas a estudiar carreras científicas y matemáticas: 7 estrategias”, no Mujeres con Ciencia (Como seria o mesmo para a Filosofia?)

Uma notícia sobre a impossibilidade de implantar a BNCC devido ao corte de recursos.

Por fim, acabo de receber de um colega antenado no Escola sem Partido, e vale noticiar, que (agora ex-) procuradora geral da República Raquel Dodge formulou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, com pedido de medida cautelar Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, com pedido de medida cautelar contra o troço.

Um encerramento

Este blog anda pouco alimentado, e não é por falta de notícia ou ideia a ser compartilhada, senão especialmente por falta de baralhamento da autora.

Já não sou mais professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul desde meados de junho de 2018. Acabo, aliás, de submeter o relatório final da pesquisa que realizei nos últimos quatro anos sob o título Perspectivas Didático-Filosóficas. Deixo este relatório aqui, a modo de registro público das principais atividades realizadas sob o guarda-chuva que o projeto foi, pois para realizar boa parte das atividades relatadas recebi apoio em forma de recursos públicos tanto por parte da Propesq UFRGS quanto por parte de autarquias federais – em especial da CAPES e do CNPq.

Agradeço imensamente a todos os estudantes, colegas e amigos que compartilharam e construíram ideias e ações em prol do ensino de filosofia neste período e desejo que possamos seguir a caminhada.

Agora, quando atuo em minha casa da alma, a Universidade Federal de Santa Maria, me encontrando ainda na readaptação ao “novo” ambiente de trabalho, há muitos projetos novos, alguns mais outros menos amarrados com os antigos, sobre os quais pretendo contar proximamente.

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Quem sabe convidando mais gente para escrever aqui não se areja melhor o espaço?