Uma carta para Márcia

Claremont, 15 de maio de 2023.

Márcia, querida

Já faz um tempinho que queria te escrever mais uma carta, depois daquela primeira que enviei há alguns meses, e hoje tu publicaste a carta aberta a Janja – que me comoveu. Então, retomo a conversa por meio desse meu blog empoeirado. Coisa boa que é mover as coisas, limpar, mudar tudo de lugar. Herdei o hábito de minha avó, da re-volta, refazenda da vida doméstica no gesto de trocar os móveis de lugar a cada pouco.

Tu sabes que eu te admiro as coragens e as fibras. 

Mas cada vez que novamente eu leio ou assisto as coisas que as pessoas (quase todos indivíduos machos da nossa espécie) dizem de ti, do que pensas e dizes, do teu fazer no mundo, aquele meu casal que vive na sete em Libra, Marte e Palas, se alvoroça por uma peleiazinha. E justamente porque agora vejo meu mapa povoado também pelas “asteróidas” (conversa pra outros dias: tínhamos que chamá-las “as planetas”!), não fiz mais do que postar hoje mais cedo, no Twitter, o link pro teu texto, incluindo um breve comentário:

Quer dizer, amiga, como se diz em gauchês, “me aguentei” pra não brigar por lógica.

Fiz almoço escutando notícias do Brasil, e comentários tipo: NOOOOSSSA, a familícia agiu como mi-LÍ-cia quando alcançou os picos do poder pelo qual sempre, e unicamente, trabalharam a vida toda! E eu ainda assisto? Pior que sim. E ainda uso o Twitter.

Depois do almoço jardinei um pouco e ainda fui comprar comidas; enquanto esperei minha carona no café-ao-lado-do-hortifruti, avancei mais umas páginas na lida com o livro do Shah. Sabedorias ancestrais a gente não despreza, né?

Voltei pra casa, transplantei umas mudas grandes de Artemísia da horta pro jardim da frente (as mudas que plantei no final do outono estão virando duas árvores, guria, uma das quais estava sufocando meus alhos e cebolas!), comi bergamota e só agora às seis da tarde é que sento pra te escrever. Quero te contar como eu leio o causo em questão – ou, melhor, como eu entendi o processo de criação desse causo – e com isso te convidar pra conversar, de amiga pra filósofa e vice-versa. Vamos?

A Maior Artemísia do Meu Jardim

Flor, tive de parar ontem porque deveres doméstico se impuseram. Agora são 11:09 do dia 16 de maio, e os mesmos deveres (mais a notícia de que meu cachorro está hospitalizado) me tomaram quase toda a manhã. Porque eu considero dever cuidar do meu jardim, que está cheio de cebolas florescendo e eu estava estudando como lidar com esse fenômeno. Aparentemente não terei cebolas este ano, mas muitas, muitas sementes para plantar quando for a época.

Então, de ontem pra hoje eu li mais um texto sobre o causo, da Laura Astrolabio, no Instagram. Mas como eu não pretendia falar sobre o ponto do texto dela (que é a legitimidade da existência mesma do cargo de Primeira-Dama), que é também parte do teu, não vou comentar. Não, pera, só uma coisinha: ela diz que tu falaste do cargo de Primeira-Dama em um texto, mas foi na entrevista ao UOL (e em outras), ou tu escreveste algo antes disso que eu não li? Seja como for, tu deves estar se perguntando: “Mas se não é sobre isso (a “função Primeira-Dama”), então sobre o que vamos conversar?” E eu te respondo que queria começar sublinhando o que me parecem ser algumas pressuposições de algumas das coisas que disseste na entrevista que provocou todo esse ti-ti-ti ridículo. É muita má-fé tomar o que tu disseste como indício de que estarias querendo “derrubar Janja” (não vou inserir hiperlinks pra isso, que não quero dar cliques pros canalhas). Pra ti, este é mais um capítulo da perseguição que vens sofrendo há anos, por gente de fora e de dentro do campo progressista, e que te levou ao exílio. Pra mim, que já te achei uma chata no passado e hoje entendo melhor de onde vinha essa impressão, hoje que te conheço pessoalmente e posso me dizer tua amiga, hoje que eu não tenho mais medo de ser considerada chata, este é um momento de compartilhar contigo meu modo de entender algumas discussões feministas.

Começo observando aqui o que disse no meu tweet, que a tua foi uma colocação hipotética, condicional. Dessas que qualquer uma que já tenha tentado ensinar lógica sabe bem como é difícil (cada vez mais difícil) transpor aos estudantes. Vou voltar a isso adiante. Por ora observo que se já não é fácil para muita gente entender uma afirmação condicionada pela outra (tipo “Se chover, então levo o guarda-chuva” – sendo que podes também levar se não chover, ou se não souber se vai ou não chover) – as coisas ficam mais complicadas quando se afirmam duas condições ou hipóteses antes de outra, como em “Se chover, e se estiver frio, então levo guarda-chuva.” E foi exatamente esta a tua resposta a uma pergunta da Milly Lacombe. Disseste “Se eu for bastante radical, e se eu fosse a Janja, [então] renunciava a esse cargo de primeira-dama e ia fazer alguma coisa realmente mais revolucionária”.

Vê, Márcia, todo o causo depende de uma leitura dessa tua afirmação, ou melhor, do modo como ela foi lida pelos editores do UOL (que escolheram a manchete Se quer revolução, renuncie ao posto de primeira-dama.). E, evidentemente, de como ela foi sendo relida e replicada em/por outros veículos – uns mais outros (bem) menos sérios. O que eu te proponho revisitar, de início, é a pergunta que te endereçou a Milly (cacoete filosófico meu, esse de não responder as perguntas antes de pensar nos termos em que ela foi feita, pra ver se não tem ali algum pressuposto problemático, com o qual não quero me comprometer, ou mesmo um intencional pega-ratona).

 Degravei, do trecho de vídeo selecionado pelos editores para abrir o texto:

A simples menção do nome “Janja” provoca uma loucura coletiva, né, e aí a gente mistura com misoginia, com machismo – a gente sabe o que a Dona Marisa passou, né, mas só que Janja vem aí com uma potência revolucionária, né. Eu escrevi um texto outro dia em que, assim, mulheres com libido e transantes incomodam muito mais, né. Como você tem visto o papel da Janja.. Que revolução ela pode ainda imprimir nessa função [de Primeira-Dama].

Agora, a tua resposta aceita sem discussão a premissa da Milly, de que há uma potência revolucionária na figura da Janja, como primeira-dama (tese com a qual eu concordaria, não é esse o ponto). Mais do que isso, a Milly deixa claro que essa potência se relaciona ao fato de Janja emanar uma energia de mulher transante, que expressa sua libido de um modo que perturba muito os humanos não ou pouco transantes desse mundo. O problema principal com a tua resposta, a meu ver, é que nela todas as palavras conectadas com a ideia de revolução não têm a mesma carga semântica a ela atribuída pela jornalista. O teu sentido de “revolucionário” se associa ao teu feminismo, radical, que até onde entendo ainda não discute questões de política da libido transante. Me engano?

UFRGS – Campus do Vale numa tardezinha qualquer

Ora, sabemos que Janja se considera e é considerada feminista. Sabemos (e tu muito mais e melhor do que eu) que os feminismos são múltiplos, variados histórica e socialmente, e por vezes até conflitam entre si – mas nunca no caroço, que é o mesmo: pleitear o reconhecimento e a reparação das inequidades que nos apagam, esmagam, oprimem e matam simbólica, financeira, espiritualmente, pra dizer bem pouco. A Janja, até onde eu sei, jamais se quis revolucionária. Das poucas entrevistas que eu vi dela, como a que ela concedeu para a Emissora em 13 de novembro de 2022 (você assistiu?), ela se diz uma sonhadora pé-no-chão que pensa em problemas importantes pro mundo e que agora está tendo a oportunidade de contribuir para algumas das mudanças que o Brasil e o mundo exigem. 

Ela é socióloga, né, trabalhou com questões de sustentabilidade das comunidades indígenas na região de Itaipú, e diz que considera que sua militância se fez muito mais no campo profissional do que no político. Eu estou trazendo esses elementos aqui pra gente não falar dela de forma caricatural, como os entrevistadores parecem ter te induzido a fazer, e vestir a Janja com o espartilho da posição inessencial e subalterna (tuas palavras) de primeira-dama. (Se e quando a gente for conversar sobre “o que é isso, ser uma primeira-dama?”, eu gostaria de estudar mais antes, tá?) Tudo o que eu tenho acompanhado das ações de nossa primeira-dama me mostra que é distorção demais falar dela, e da função dela, como a pessoa que ajuda o Lula a virar as páginas dos seus discursos. Sim, ela faz isso – porque oxalá faz o que quer – mas ela também se engaja sobremaneira nas questões políticas (tanto que é detestada por companheiros e companheiras de todas as querências). Mas, mais do que isso, e muito importantemente: ela não é uma feminista radical como tu. E, ainda assim, o potencial revolucionário dela como primeira-dama está na cara, amiga, é só acompanhar um pouco! Não existisse esse potencial, ela não seria alvo, como tu tantas vezes foste e ainda é, de tantas falsificações que a desenham como “muito metida”, “muito feminista”, “não sabe seu lugar” etc..

A tua reação ao que entendo como bait da jornalista foi a de primeiro tentar separar a Janja-pessoa da função ou cargo de primeira-dama, o que eu não objeto. Só que, a seguir, tu dizes que se ela, Janja, caso fizesse o que tu farias no lugar dela e renunciasse a seu cargo, daria um salto na cultura, um empuxo forte, né, ou melhor dizendo um impulso forte pra cultura feminista. (Teu ato-falho é importante, mas eu quero focar em outra coisa).

É que, minha cabeça de professora de lógica, essas tuas inferências são instâncias de fórmulas condicionais gerais como “eu, no teu lugar, faria x”, “eu, se fosse tu, não aceitaria y”, “eu, se fosse ela, daria uma pirueta naquela hora” – que eu considero como vícios de linguagem/pensamento daqueles que temos e nem sentimos. Mas eu não gosto de engolir sem mastigar, e fico feliz por ter a chance de, nessa carta, contar a ti e aos leitores do meu blog que há um tempo já eu penso assim: usar esse tipo de expressão não tem sentido lógico, pelo simples fato de que se eu fosse tu, eu seria tu, não eu e, assim, agiria exatamente como tu ages. E aqui a lógica e a gramática dão as mãos (tô aqui lembrando do capítulo do velho livro de Copi sobre as funções da linguagem, onde ele distingue funções lógicas e funções gramaticais da linguagem). Porque apesar dessas estruturas frasais parecerem expressões lógicas condicionais ou hipotéticas, o “se… então…” nelas não possuem função lógica, de amarração das condições de verdade do antecedente e do consequente (como eu sugeri no meu tweet), mas têm uma função modalizadora, quer dizer, são um artifício que quem as emprega utiliza para dar conselhos, ou mesmo ordens.  E é talvez por isso que a frase que os editorialistas escolheram pra manchete é o teu dito no modo imperativo. Quando eu a li pela primeira vez, pensei: garanto que distorceram o que a Márcia disse! Mas, infelizmente, esse não é o caso.

Porque a implicatura conversacional do teu dito é a de aconselhar a Janja, não a de discutir o que a função de primeira-dama representa. Se fosse isso, a conversa talvez não soasse condescendente como soou a tantos ouvidos – alguns dos quais são ouvidos de mentes sedentas por clique, como as que que te acusam de algum conluio contra a primeira-dama. O tom de que falo me ressoou forte quando disseste que, se fosses ela, iria cuidar da minha vida e fazer coisas muito revolucionárias. Mas, de novo, se tu fosses ela, não seria revolucionária! Depois, dizes:  

Quer fazer uma revolução? Larga disso; vai ter uma vida própria, vai pro seu trabalho… Sair do papel da esposa que apoia, eu acho que é importante pras esposas do Brasil. Então, se ela quer servir de exemplo, eu me proponho a fazer toda a assessoria (risos)…

(Chiste importante, penso eu, mas volto ao meu ponto.)

Ocorre que Janja não quer fazer revolução. Ou quer? Quem fala em potencial revolucionário é Milly Lacombe! Amiga, eu acho que caíste numa sorte de arapuca.

Independentemente disso, é obvio que eu posso te imaginar argumentando assim: Gisele, o que eu defendo é que não é possível ser uma feminista radical e uma primeira-dama, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, pra lembrar o Estagirita. Concordo. Mas em algum momento tu dizes que ser feminista e ser primeira-dama são coisas que não combinam – o que é diferente, pois nesse caso a implicatura é que só há um modo de ser feminista, o que sabemos que é falso, e um modo de ser primeira-dama, igualmente falso (na mesma entrevista, as coisas que dizes da Micheque evidenciam isso, certo?)

Então, eu gostaria que a gente pudesse conversar sobre o que é o melhor sentido desse termo [feminista radical] que tu utilizas pra te descrever. Porque eu concordo contigo sobre precisarmos colocar as mulheres num outro patamar na política brasileira, na cultura, na história, em todos os lugares, mas no entanto não fico confortável com uma feminista tão vocal como tu diga à outra que, se fosse ela, tomaria uma atitude drástica, eu diria, vou cuidar da minha vida… e iria construir uma história com as mulheres brasileiras. Meu desconforto vem, primeiro, pelas razões lógico-gramaticais que apontei antes, mas depois porque dizer isso é sugerir, novamente por implicatura, que ela não está, como esta primeira-dama poderosa que ela já é, sendo um modelo (e um bom modelo, a meu ver) para as esposas do país. Nem que “ser uma grande mulher por trás de um grande homem” seja incompatível com uma postura feminista. Isso me toca muito pessoalmente, sabe Márcia… 

Sol na 4 guarda seus papéis de carta, pois sim.

Tu sabes que eu optei, e estou vivendo de acordo com esta opção há um tempinho, por estar no papel da mulher que apoia seu homem (cuida da maior parte das praticidades miúdas da vida, dedica tempo e disposição ao estabelecimento das melhores condições para que ele deixe frutificar todas as flores deu seu brilhante intelecto, apoia e critica como intelectual de capacidade equivalente…). E tenho certeza de que se tudo o que tu disseste sobre Janja/Primeira-Dama fosse endereçado a mim, uma esposa brasileira, à função que eu escolhi desempenhar (primeira-dama do meu lar), eu ficaria chateada. Eu sentiria como se tu estivesses invadindo um espaço de autonomia que eu levei anos pra habitar, e para o qual que os feminismos me empoderaram à beça, em especial porque me colocaram em contato com outras, e até em situação de amizade com uma das mais famosas feministas do Brasil – uma que diz que feminismo é o contrário da solidão.

Vamos, sim, querida, ressignificar os lugares das mulheres nesse país. Mas eu gostaria de fazer isso sem ser, e nem ver outras sendo alvo de condescendências das companheiras de caminhada. Os abutres estão por todo lado, a gente precisa ficar atenta aos seus estratagemas, arapucas e quetais.

Há revoluções e revoluções; muitas em potencial. Se elas parecerem se contradizer, como quando uma feminista se torna primeira-dama, bem, a gente tem todas as ferramentas para examinar cada caso, não generalizar nem homogeneizar as formas de vida feministas, e quem sabe até encontrar um modo paraconsistente de nos aceitarmos como somos – quer dizer, sem que possamos inferir n’importe quoi das contradições que encontrarmos no caminho.

Potências são como sementes. Elas precisam de cuidado pra não serem perdidas por causa da desatenção da jardineira (hoje mesmo eu aprendi que o ramo de arruda que colhi outro dia não vai me dar as sementes que eu queria, porque precisava de mais umas semanas antes da poda…)

Me conta o que sentes e pensas dessa partilha de ideias?

Um abraço bem apertado de saudades e sempiterna admiração,

Gisele

Claremont, 16 de maio de 2023.

As florzinhas das cebolas que plantei no início da primavera.

P.S.: Vê como é a Palas em Libra, conjunta ao Marte? Acho que é bem como a do Klimt.

Me aguentei contra os que te injustiçam, mas não contra o que percebo como alheio à (alguma) lógica.

Mas não se perca de mim, não desapareça

Resposta a uma Coluna ANPOF

No dia 11/05/2023, o colega de profissão Luís Fernando Crespo teve pulicado, na aba “Coluna ANPOF” do website de nossa Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia, o texto “A falácia da dificuldade da matemática”.

Escrevi a carta abaixo como uma resposta. Como ela tem o dobro do tamanho limite dos textos a serem publicados como colunas, estou retomando as atividades do blog para publica-la.

(Outra razão para publicar a carta aqui é que posso inserir hiperlinks.)

Carta-resposta a Luís Fernando Crespo

por Gisele Secco

Oi Luís Fernando

A gente não se conhece. Me chamo Gisele, sou professora do departamento de filosofia da Universidade Federal de Santa Maria, no momento usufruindo de uma licença não-remunerada e vivendo fora do Brasil. Acabo de ler sua manifestação na coluna ANPOF de 11 de maio de 2023 e resolvi escrever no estilo démodé de interação filosófica que aprecio tanto, a carta. Em Humano demasiado humano, Nitzsche afirma que o diálogo, assim como a troca epistolar, é a “conversa perfeita”, pois nessas interações “tudo o que uma pessoa diz recebe sua cor definida, seu tom, seu gesto de acompanhamento, em estrita referência àquele com quem fala.” A gente não se conhece, e é por isso que inicio esta carta justificando a resolução de escrever uma carta, que apesar de pública é endereçada a você (ou vice-versa?). A gente não se conhece, e isso me desafia a encontrar a cor e o tom adequados a este desconhecimento, mas sem desrespeitar o sentimento de obrigação que de imediato se me acometeu, de reagir ao teu escrito.

É que, desde o lugar de onde eu leio as tuas considerações (ah: não leve a mal a alternância de tratamento, entre “você” e “tu”; não é desrespeito, mas coisa de gaúcha), elas me soam estranhas, de diferentes maneiras. Vou, então, tentar te contar as razões de meu estranhamento, te fazer algumas perguntas e me colocar à disposição para seguirmos a conversa – se ela for sobre critérios de organização curricular no contexto da educação escolar e, em especial, sobre os papéis da filosofia e da matemática neste contexto.

 

Esse condicional se relaciona com meu primeiro estranhamento, porque você começa anunciando seu lugar, ao lado da filosofia e das demais disciplinas preteridas “em número de aulas, seja na importância dada dentro do conjunto.” Do conjunto do currículo escolar, é de se presumir. Tua leitora, então, infere que o tema do texto é a questão da distribuição/hierarquização das disciplinas nos currículos, o que fica evidente quando anuncias o teu segundo ponto, que eu não entendi. Explico: acabaste de nos informar que o tema do texto é de natureza curricular, mas de imediato nos dizes que uma das disciplinas do currículo, a matemática, é tão importante quanto as demais porque do contrário estarias reproduzindo algo da ordem social mais ampla, ou seja, relações entre opressores e oprimidos. Estás sugerindo, portanto, uma analogia entre componentes curriculares e indivíduos (ou grupos de indivíduos) em interações sociais “em geral” – analogia que se faz explícita no teu terceiro ponto, pelo qual localizas a matemática num espaço curricular de opressão, como opressora. Mas eu falho em ver a plausibilidade da analogia, porque você não explicita em que sentido uma disciplina (ou componente curricular) pode ser opressora do mesmo modo que pessoas ou instituições. Parece que você está pressupondo o mesmo que a Andrea Nye quando, em seu livro de 1990, ela inaugura uma tradição de críticas feministas à lógica, quer dizer, que a um gênero de conhecimento – que se manifesta como know-how ou habilidade na vida comum, mas se cristaliza como campo teórico no ambiente acadêmico, como é o caso de lógica e matemática – podemos atribuir as mesmas qualidades que atribuímos a pessoas, instituições, sociedades. O meu primeiro estranhamento, em resumo, é: esta analogia precisa ser detalhada, sob pena de confusão entre tipos ou modalidades de conhecimento, suas interações, e as dinâmicas sociais nas quais estes saberes são transmitidos, ensinados e aprendidos. Do contrário, a leitora não entende qual é o assunto do teu texto.

 

Uma disciplina formal, simbólica, como o são a lógica e a matemática, não é e nem pode ser opressora ou liberal em e por si mesma, seja em sua dimensão teórica ou prática. Por “prático” quero dizer, por exemplo, saber calcular a porcentagem dos juros que pagamos quando deixamos atrasar um boleto ou saber inferir de “todo político é corrupto” e “Maria do Rosário é uma política” que “Maria do Rosário é corrupta” – mesmo que ela não o seja de fato). E por “teórico” o saber enunciar os algoritmos usados para calcular porcentagens ou o saber que se um indivíduo faz parte de um grupo do qual se predica uma qualidade, podemos dizer dele que possui esta qualidade, independentemente de qual seja a qualidade ou de quem seja o indivíduo. Essa independência é o que a gente, quando ensina lógica, chama de caráter formal das inferências, e este caráter é o que permite que ambas, lógica e matemática, tenham uma aplicabilidade quase universal. Assim, disciplinas formais não são entidades dotadas de intencionalidade ou ideologia, como são pessoas, grupos, instituições. Nem à lógica (como queria a Nye) nem à matemática, como você parece querer, faz sentido atribuir características demasiado humanas. O alvo a ser acertado não é a disciplina, mas seus praticantes.

 

Mas quem são os praticantes de matemática e filosofia nas escolas, senão os professores e professoras? “Ah”, tu poderias objetar, “mas eu não estou me referindo aos colegas que lecionam na escola, estou falando doe quem elabora documentos que determinam arranjos curriculares (a nível nacional, estadual etc..) e dos gestores e gestoras que, ao fim e ao cabo, tomas decisões baseados nas hierarquias disciplinares típicas do senso comum.” Ao que eu responderia: ótimo! Então vamos falar sobre quais aspectos das práticas desses atores evidenciam a ligação entre suas preferências ideológicas e suas ações no campo dos estudos e políticas curriculares. Tem um bocado de gente séria que se dedica a trabalhar esses tópicos, e tem a realidade, sim, batendo à porta dos milhares de licenciados em filosofia e humanidades e dizendo “Não há vagas”. Mas a questão aqui é política, em vários sentidos, muitos deles implicados no seu texto sem nitidez sobre como se relacionam. Vou dar um exemplo:

Você afirma que “a nossa sociedade” valoriza sobremaneira a matemática, considerando-a útil por causa do tipo de raciocínio que ela ensina. A qual tipo de raciocínio você se refere: dedutivo, por analogia, por indução, raciocínios por redução ao absurdo? Pergunto porque, tendo tido a alegria de, durante anos, formar professores de filosofia, biologia, química, língua portuguesa, física e matemática, tive a chance de ler e discutir com eles inúmeros documentos oficiais nos quais se detalham os diversos tipos de raciocínio implicados em cada uma delas, bem como de descobrir diversas maneiras de utilizar as mesmas ferramentas lógico-matemáticas nos diferentes contextos disciplinares, de acordo com as particularidades de cada uma delas e as potencialidades interdisciplinares que revelam. Mas ainda que o seu texto não especifique a natureza “deste tal raciocínio” exigido pela matemática, eu consigo concordar com a sua ideia de que modos matemáticos de raciocinar não são ensinados apenas pela matemática como componente curricular (do contrário, como poderíamos explicar a aplicabilidade desses modos de raciocínio às demais ciências, não é mesmo?). Agora, quanto à alegação de que “a filosofia poderia dar conta” desses raciocínios “se pensarmos a matemática como um ramo da lógica”, meus estranhamentos mudam de figura.

 

Porque agora você está condensando, em uma breve e incidental frase, milênios de discussão. Sem exagero: as relações entre lógica, matemática e filosofia são tão atávicas quanto complexas (e a meu ver fascinantes), tão historicamente emaranhadas e em tantos contextos distintos (desde a China antiga, passando pela Mesopotâmia, pela Índia e pela África, antes de chegar ao mediterrâneo onde essas disciplinas, tais como as conhecemos “nasceram”), que meus escrúpulos historiográficos não me permitem consentir com o seu pressuposto fregiano. A redutibilidade da matemática à lógica, você deve se lembrar, foi uma vez, por obra de Frege, o carro chefe dos programas de fundamentação da matemática, programas cujas consequências indiretas até têm a ver com um modelo de pedagogia matemática com razão bastante criticado, e que hoje em dia felizmente vai sendo remodelado em favor de um ensino menos atrelado à teoria dos conjuntos e mais afeito às práticas de cálculo, raciocínio e provas que incluem recursos tão distintos quanto representações visuais, tácteis e diagramáticas de toda sorte, ferramentas de programação etc.. Desculpa, Luís Fernando, eu me comovo com esses tópicos e acabo me desviando do ponto. Estou começando a perceber, conforme escrevo e releio o teu texto, que o meu ponto principal é mesmo o teu uso de analogias. Vamos ver.

 

Entre os parágrafos três e quatro tu argumentas por meio de uma comparação entre filosofia e matemática, em especial seus “conteúdos”. É verdade que você não usa essa palavra, mas sugere que se trata disso quando fala do treinamento dos estudantes na prática de “resolução de matrizes determinantes” e compara esse aprendizado (que você mesmo reconhece necessitar de muito exercício) com um correspondente filosófico, qual seja, “todo o idealismo alemão”. Novamente, falho em ver o que há de relevante entre os dois casos como para manter a analogia de pé: primeiro porque entre aprender a resolver matrizes e receber uma explicação de todo o idealismo alemão não parece haver correspondência alguma. Num caso, o matemático, estamos falando de um saber-fazer, uma habilidade que se aprende por meio da repetida manipulação de símbolos de acordo com regras de transformação e substituição dos mesmos. No outro, o filosófico, estamos falando de um saber-que, um conhecimento “histórico” que você parece sugerir que só é bem apreendido quando o estudante o entende “por dentro”. Pois, novamente: a não ser que você explicite em que sentido as habilidades exigidas para fazer história da filosofia alemã são similares às habilidades demandadas para a resolução de matrizes, a analogia falha e, com ela, a força de teus argumentos em defesa da filosofia no currículo escolar.

 

Nota bene: eu mesma aposto na existência de conexões incrivelmente potentes a serem feitas entre as didáticas da história, da filosofia e da matemática, e opino que elas são obliteradas justamente pelo tipo de argumento que você apresenta. Tudo se passa, de acordo com sua mensagem, como se fosse legítimo discutir questões de chão de escola, como a distribuição de carga horária por disciplina, com base em considerações sobre o valor destas disciplinas para a sociedade, mas sem que se nos sejam oferecidos elementos relevantes, vindos da realidade, como por exemplo, os solavancos da aprovação da BNCC, a imposição autoritária da reforma do ensino médio e os efeitos disso nos estados, municípios e escolas. Mas mais do que isso, as lentes (heideggerianas, talvez) com as quais você sugere compreender a matemática como disciplina escolar me parecem ser inadequadas para compreender o que seja a matemática como campo do conhecimento. E esta distinção, entre as disciplinas escolares e os campos de saber e pesquisa acadêmica que lhes correspondem, é o marco zero de qualquer bom debate sobre como organizar os currículos escolares. Nova nota bene: mesmo que eu não me sinta confortável em entrar no mérito da perspectiva de Heidegger sobre as ciências formais, preciso te dizer que a ideia de que “O objeto matemático não toca o ser humano em sua humanidade” é extremamente contenciosa, e a meu ver só serve para engrossar o caldo discursivo cuja consequência nefasta acaba sendo a eliminação da matemática dos currículos de escolas públicas, enquanto nos das privadas os alunos não só aprendem matemática como programação – essa coisa tão perigosa de aprender que, no nosso dia-a-dia, vive guardada dentro das licenças de software proprietário, pelas quais a maioria de nós paga sem sentir. Há perigos e perigos.

 

Quando você enfim nos conta o que significa “compreender ideias por dentro”, então, fica muito evidente pra mim que, ao contrário do que você talvez desejasse, as analogias entre práticas matemáticas e filosóficas que você oferece servem pra contestar o que você quer provar. Senão, vejamos. Você diz: “Compreender as ideias ‘por dentro’ implica tentar enxergar aquilo que os pensadores enxergaram e que os motivou à reflexão.” Em que mundo isso não é exatamente o que se passa nas boas aulas de matemática, nas quais se trata de fazer os estudantes verem o mesmo que os matemáticos viram quando tentaram resolver um problema (tipo aquele da duplicação do quadrado que Sócrates propõe a Mênon, lembra?)? E deixar que os alunos experimentem soluções, e fracassem, e tentem novamente, coletiva e colaborativamente, até chegar a uma solução? Qual seria a diferença essencial entre esse proceder didático-pedagógico e o proceder socrático, dialógico, que a todos nos inspira como modelo de professor?

 

Bem, a conversa já está muito longa e eu preciso terminar. Hoje vou encontrar uns amigos, um grupo de matemáticos, filósofos e computeiros com quem temos um seminário de história e filosofia da lógica e da matemática. Lá, quando um desavisado começa com essa estória do que é a base do quê, ou sobre a suposta inutilidade da fórmula de Bhaskara para as crianças na escola, a gente filosófica respira e pergunta: base lógica, sociológica, histórica ou pedagógica? E seguimos pensando em como articular nossos saberes de modo que uns às outras se entendam, cada um na sua, mas com muitas coisas em comum.

 

A gente não se conhece, mas espero que possamos seguir conversando.

 

Cordiais saudações,

 

Gisele

 

Claremont, 12 de maio de 2023.

 

P.S.: Você poderia explicar a escolha do título do seu texto? Não vi referência nem à “falácia”, nem vi discussão sobre a dificuldade da matemática…

Sobre mais um passo num longo caminho

Hoje aconteceu a mesa redonda que anunciei aqui.

Foram quase quatro horas de conversa boa sobre problemas de gênero no cotidiano da vida acadêmica, tanto no que diz respeito a questões comportamentais que precisam ser revistas, principalmente por parte de professores, quanto sobre questões de escolhas didáticas, de metodologias filosóficas, metafilosofia, reescrita do cânone, abordagens interdisciplinares de gênero e feminismo, temas transversais.

A Professora Janyne Sattler iniciou os trabalhos com uma fala intitulada “Motim”, em que ela contou um pouco da sua trajetória pessoal e intelectual em torno das questões de gênero e feminismo, destacou seu interesse pelas novas narrativas em filosofia, a discussão sobre modos de escrita filosófica, a intersecção das pautas feministas, anticapitalistas e antiespecistas, falou da necessidade de termos “paciência revolucionária” para lidar com a misoginia nossa de cada dia, bem como de entendimento partilhado sobre o que se nos ocorre.

Depois eu falei usando os slides de que falei aqui. Com a autorização da autora (Katarina Peixoto), usei a imagem da Hidra da Misoginia para ilustrar a miríade de problemas que precisamos entender e dissolver (a wittgensteiniana em mim não consegue pensar em outros termos).

Juliana Missagia e Mitieli Seixas apontaram caminhos de ação para pensarmos nas mudanças de práticas didáticas e de pesquisa. Juliana enfatizou os desafios institucionais envolvidos na mudança de perspectiva de pesquisa na direção de temas relacionados a gênero e feminismo, enquanto Mitieli, após uma descrição de seu despertar do longo sono dogmático em que vivia sem o feminismo em sua vida acadêmica, manifestou algum desconforto com a inserção algo artificial de autoras em cursos (especificamente os de história da filosofia moderna, sua área de especialidade), dando exemplos de como nem sempre é tranquilo simplesmente inserir mulheres filósofas nos planejamentos de disciplinas.

Katarina Peixoto autorizou que eu utilizasse a imagem acima,
que ela usou em sua palestra na Libori Summer School de 2019.

Deixo a apresentação para download e termino contando que a conversa que se seguiu foi, espero, educativa para todos os presentes.

É preciso dizer que temos aprendido muito com nossas estudantes, e que nos alegra e empodera esse movimento que estamos fazendo, por força delas.

Nossas alunas demandam e merecem melhor tratamento, nosso alunos desejam e merecem ser reeducados em um ambiente em que também os professores se reformulem enquanto professores de uma geração que é muito mais perceptiva e não aceita mais comportamentos e didáticas canonizados por padrões misóginos, racistas e classistas. Nós merecemos espaço para as pesquisas e experimentações didáticas que contemplem a inclusão de mulheres, povos negros, não-ocidentais, LGBTQI, na história da filosofia. Vamos explorar novas narrativas, métodos e estilos, diversificação em nossas práticas de pesquisa, ensino e extensão. Os ciclos que vêm tem como para ser virtuosos.

Afinal, quão boa pode ser uma filosofia senão previr abertura para a revisão de crenças e costumes bem assentados em nossas vidas?

Há muito a ser feito. Há ganas de tudo melhorar. Os tempos são pesados. Mas quero acreditar que juntas e juntos (“o feminismo é para todos“, ensina bell hooks) nos fortalecemos para lidar com a nefasta Hidra.

E desmedrar-lhe algumas cabeças.

Filosofias, Gêneros, Transversalidades

O Departamento de Filosofia da UFSM tem uma história interessante, marcada dentre outros detalhes pela baixíssima presença de mulheres em seu quadro docente (eu, que aqui estudei de 2000 a 2006 – licenciatura e mestrado – só tive uma professora, substituta, no último semestre, e algumas professoras de disciplinas de outros cursos. Com destaque para aquela que interpretou o sonho de Freud, a Maravilhosa Marilu).

Na semana que vem (sexta-feira, dia 18 de outubro) faremos – Juliana Misssagia, Mitieli Seixas e eu, as atuais professoras da casa – uma mesa redonda com a ex-colega de Departamento Janyne Satler, agora professora na UFSC. Tanto pra assuntar, filosófica e didaticamente.

Vamos?

 

Porque nosso levante não tem volta.

Que lugar é esse, o da filosofia?

Ocorre nos dias 04 e 05 de novembro, no Departamento de Filosofia da UFSM, o Encontro Regional da Residência Pedagógica em Filosofia, organizado pelos colegas de Mitieli Seixa (UFSM), Priscilla SSpinelli (UFRGS) e Marcio Paulo Cenci (UFN).

Estão abertas das inscrições para comunicações e pôsters, conforme o cartaz abaixo.

Vamos lá?

Um encerramento

Este blog anda pouco alimentado, e não é por falta de notícia ou ideia a ser compartilhada, senão especialmente por falta de baralhamento da autora.

Já não sou mais professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul desde meados de junho de 2018. Acabo, aliás, de submeter o relatório final da pesquisa que realizei nos últimos quatro anos sob o título Perspectivas Didático-Filosóficas. Deixo este relatório aqui, a modo de registro público das principais atividades realizadas sob o guarda-chuva que o projeto foi, pois para realizar boa parte das atividades relatadas recebi apoio em forma de recursos públicos tanto por parte da Propesq UFRGS quanto por parte de autarquias federais – em especial da CAPES e do CNPq.

Agradeço imensamente a todos os estudantes, colegas e amigos que compartilharam e construíram ideias e ações em prol do ensino de filosofia neste período e desejo que possamos seguir a caminhada.

Agora, quando atuo em minha casa da alma, a Universidade Federal de Santa Maria, me encontrando ainda na readaptação ao “novo” ambiente de trabalho, há muitos projetos novos, alguns mais outros menos amarrados com os antigos, sobre os quais pretendo contar proximamente.

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Quem sabe convidando mais gente para escrever aqui não se areja melhor o espaço?

A Filosofia na Base, ou no meio do redemunho

Noticiou-se na semana passada a entrega da terceira versão da BNCC por parte do atual dirigente do Ministério da Educação (MEC) ao Conselho Nacional de Educação (CNE). Aqui se pode acessar a notícia, no site da câmara.

Antes desta entrega Maria Helena Guimarães Castro já havia, em videoconferência a jornalistas especializado em educação (JEDUCA), apresentado certas sinalizações acerca do documento, que se refere tão somente ao nível fundamental de ensino básico, excluindo-se o médio.

A Associação Nacional da Pós-Graduação em Educação divulgou esta nota preliminar, da qual destaco o seguinte trecho:

      A BNCC é um documento inspirado em experiências de centralização curricular, tal como o modelo do Common Core Americano, o Currículo Nacional desenvolvido na Austrália, e a reforma curricular chilena – todas essas experiências amplamente criticadas em diversos estudos realizados sobre tais mudanças em cada um desses países;
      A retirada do Ensino Médio do documento fragmentou o sentido da integração entre os diferentes níveis da Educação Básica, ao produzir centralização específica na Educação Infantil e Ensino Fundamental;
      É preocupante também a retomada de um modelo curricular pautado em competências. Esta “volta” das competências ignora todo o movimento das Diretrizes Curriculares Nacionais construídas nos últimos anos e a crítica às formas esquemáticas e não processuais de compreender os currículos;
       A retirada de menções à identidade de gênero e orientação sexual do texto da BNCC reflete seu caráter contrário ao respeito à diversidade e evidencia a concessão que o MEC tem feito ao conservadorismo no Brasil;
      A concepção redutora frente aos processos de alfabetização e o papel da instituição escolar na educação das crianças.

Os jornalistas do JEDUCA também se manifestaram, mas sobre o modo como o MEC procedeu com eles: deu acesso, com embargo, a uma versão do documento que afinal não foi aquela entregue ao CNE – nesta, expressões como “orientação sexual” não ocorrem mais (diz-se que isso ocorreu após reunião de dirigentes do MEC com representantes da assim chamada bancada evangélica do congresso nacional). mas acabou  A Base do Ensino Médio, ao que tudo vem indicando, será entregue somente em fins de 2017.

Para refletir sobre esta versão do documento, recomendo tanto este texto publicado no Nexo. Sobre a a exclusão do Ensino Médio, o papel das instituições privadas, e ainda outros aspectos extremamente relevantes, confiram as ponderações do colega Edgar Lyra neto (PUC-Rio, que participava da confecção da parte relativa à Filosofia até a ruptura no comando do governo federal) no site da ANPOF.

Há muitíssimo a discutir acerca de todo este processo, que se ganhou algo em qualidade (antecedente a ser verificado, com critérios claros e discussões públicas e sérias), certamente perdeu em caráter democrático.

Os impactos para a formação docente, por exemplo, ainda são obscuros. (Algumas universidades já estão adaptando os currículos de suas licenciaturas à resolução 02/2015 do CNE enquanto outras, mais prudentes, aguardam a versão completa da BNCC e novos posicionamentos do MEC para saber se o que a Lei 13.415 diz sobre a formação docente não é incompatível com aquela resolução.)

E a Filosofia?

Por ora, até onde pude saber em conversas com colegas de outros estados, as escolas públicas permanecem conosco em suas práticas curriculares.

Em breve podemos estar na rua, no meio do redemunho.

Teremos sido interrompidos por uma Base no meio do caminho?

 

Redemoinho, Xiologravura de Arlindo Daibert

P.S.: Na semana passada também se soube desta Comunicação da ONU sobre o famigerado programa (projeto? como chamar?) Escola Sem Partido. E, sobre o ensino superior, Lilia Schwarz refletiu sobre a situação da UERJ como prenúncio de novos e piores tempos para Universidade brasileira no Nexo.

 

 

Preparando o professor de filosofia: blogs, sites e outros afins

Neste semestre os programas das disciplinas que estou lecionando incluem uma lista, ainda provisória, de links para sites de revistas, pessoas, blogs e demais tipos de ligações online sobre filosofia e ensino, para que os futuros professores busquem informação, conhecimento, ideias etc..

Submeto-a aos leitores para que, caso se interessem, ajudem a complementa-la:

Crítica na rede (Textos de variados estilos, temáticas e graus de complexidade)  http://criticanarede.com

Didática da Filosofia (Blog do Professor Ronai Rocha) https://didaticadafilosofia.wordpress.com

Filosofia e Ensino (Blog de Leonardo Ruivo e Marcos Goulart) https://filosofiaeensino.wordpress.com

Filosofia Pop (Site com textos e podcasts sobre Filosofia e Ensino de Filosofia) http://filosofiapop.com.br

Filosofia e Filosofias (Material de apoio do livro didático de Juvenal Savian Filho) http://grupoautentica.com.br/autentica/hotsite/filosofia-e-filosofias

LEFIS UFSC (Laboratório Interdisciplinar de Ensino de Filosofia e Sociologia)  http://lefis.ufsc.br/conheca-o-lefis/historico/

LLEPEFIL UERJ (Laboratório de Licenciatura e Pesquisa sobre o Ensino de Filosofia) http://www.llpefil-uerj.net/quem-somos

Laboratório de Ensino de Filosofia Gerd Bornheim– UFRJ http://www.lefgb.fe.ufrj.br

Laboratório de Filosofia – UFMG http://www.fafich.ufmg.br/~labfil/

ReFilo (Revista Digital de Ensino de Filosofia): https://periodicos.ufsm.br/refilo/about

Páginas de filosofia http://www.paginasdefilosofia.net

Filosofia na Escola (blog do Prof. Marcelo Senna): http://filoescola.blogspot.com.br

childhood & philosophy (revista sobre infância e filosofia): http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/childhood/about/editorialPolicies#focusAndScope

Portal Traduzindo (A Coleção Traduzindo: Textos filosóficos em sala de aula é uma criação de professores e estudantes do Curso de Graduação em Filosofia da UFPR que, a partir de 2009, formaram e mantiveram as Oficinas de Tradução onde foram planejados e produzidos os volumes da coleção): http://www.ufpr-filosofia.com.br

Lista de periódicos nacionais de filosofiahttps://epistemologiacontemporanea.wordpress.com/category/revistas-e-jornais-de-filosofia/revistas-brasileiras-de-filosofia/

Revista Analytica (um dos mais tradicionais periódicos de filosofia do Brasil, que não consta na lista anterior) https://revistas.ufrj.br/index.php/analytica

Site da Academia Mexicana de Lógica http://academiamexicanadelogica.org/Presentacion-AML

Secretaria da Educação do Estado do Paraná (conferir, sobretudo, a Antologia de textos)  http://www.filosofia.seed.pr.gov.br

GT da ANPOF “Filosofar e Ensinar a Filosofar” http://anpof.org/portal/index.php/pt-BR/2013-11-25-22-44-25/grupos-de-trabalho/category-items/2-grupos-trabalho/30-filosofar-e-ensinar-a-filosofar

Projeto Paideia (PIBID Filosofia UNB): https://projetopaideia.wordpress.com/

Pibid Filosofia UFRGS http://www.ufrgs.br/ensinodefilosofia/index.html

Matheus Penafiel (Blog com relatos detalhados de aulas de filosofia no ensino médio): https://matheuspenafiel.wordpress.com

NEFI (Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias) http://www.filoeduc.org

CLEF (Site do Centro Luso Brasileiro de Ensino de Filosofia, em construção): http://www.clef.com.pt

IPO (International Philosophy Olympiad) http://ipo2017.nl

Existencial Comics: http://existentialcomics.com/comic/47

Logic Matters (com destaque para o guia Teach Yourself Logic) http://www.logicmatters.net/tyl/

History of Philosophy Without Any Gaps (Podcasts de história da filosofia, em inglês) https://www.historyofphilosophy.net

PhilPapers (plataforma com artigos de filosofia): https://philpapers.org

PhilPapers Brasil: http://philbrasil.com.br

Philosophie Magazine (revista francesa de divulgação de filosofia) http://www.philomag.com

Philosophy Bites (Podcasts de filosofia, em inglês) http://www.philosophybites.com

The Philosophers Magazine (revista inglesa de divulgação de filosofia) http://www.philosophersmag.com

Teaching Philosophy (Revista Norte-Americana sobre ensino de filosofia) https://www.pdcnet.org/teachphil

Aeon Magazine (Revista online sobre “grandes questões contemporâneas”, com ensaios, vídeos e discussões que podem ser fonte para preparar aulas) https://aeon.co/about

Daily Nous (Informações diariamente atualizadas sobre a “profissão filósofo”) http://dailynous.com/about/

The Deviant Philosopher http://thedeviantphilosopher.org/about/WhatIsDeviantPhilosophy

Merlí (Seriado catalão cujo personagem principal é um professor de Filosofia em escola pública de Barcelona) https://www.netflix.com/title/80134797

Considerações Sobre o Lugar da Filosofia no Currículo Escolar – por Augusto Lucas Valmini

Este pequeno ensaio investigará se a Filosofia deve participar da vida escolar como disciplina curricularmente obrigatória. Para tal investigação conectaremos a necessidade da disciplina de Filosofia dentro de diferentes classificações curriculares. É tendo em vista o currículo como um todo que se deve pensar na necessidade individual de cada uma das disciplinas que o compõem.[1] De modo amplo, pode-se dizer que um currículo é um conjunto planejado de experiências formacionais que serão empreendidas com vistas a algum(ns) objetivo(s). No caso do ensino médio brasileiro, existem objetivos legalmente fornecidos pela lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Neste ensaio abordaremos duas concepções diferentes que individuam a Filosofia dentro de classificações curriculares (e que podem ser utilizadas para formulação de tais currículos) e então usaremos estes aspectos únicos da Filosofia para argumentar que sua presença é necessária dado os objetivos estabelecidos por lei para o ensino médio.

Existem diferentes modos de se pensar na organização curricular de modo holista, designando a cada disciplina um lugar específico para que se compreenda as razões da classificação. Exporemos dois exemplos dessas classificações. O primeiro, fornecido por Desidério Murcho [2], divide as disciplinas através dos modos em que as questões são nelas respondidas. O segundo, fornecido por Ronai Rocha (2015), classifica as disciplinas pelo tipo de curiosidades que elas são capazes de responder.

Passemos à classificação de Murcho. A classificação foi originalmente concebida para ser uma maneira de tornar claro a secundaristas o que é Filosofia, e não tinha em vistas fornecer uma maneira de organizar um quadro de disciplinas escolares [3]. Contudo, ao mostrar como a Filosofia está comprometida com tipos de questões que não são respondidas por outras disciplinas, a classificação sugerirá que a Filosofia deve estar presente como disciplina por ser apenas nela que perguntas de certo tipo são respondidas.

A divisão feita por Murcho separa os conhecimentos abordados pelas disciplinas entre empíricos e não-empíricos.

 

Modelo de classificação pelos modos de se achar respostas às perguntas
Conhecimento Empírico Ensino de Línguas, Física, Química, Biologia, Sociologia, Ed. Física… Suas soluções são dependentes de testes empíricos.
Conhecimento Não-Empírico Lógica, Matemática. Suas soluções não dependem de testes empíricos, mas de recursão a conjuntos de regras.
Filosofia Suas soluções não dependem nem de testes empíricos e nem de recursão a conjunto de regras.

 

Exemplifiquemos o quadro com pares de perguntas contrastantes:

1) As pessoas são felizes?

2) O que é a felicidade?

A pergunta 1) não é filosófica pois existem testes para sua resolução (poderia ser feita uma enquete), enquanto a pergunta 2) é filosófica pois não existem testes para sua resolução.

Outro par de perguntas:

3) Um argumento da forma modus ponens é válido?

4) É adequada a tabela de verdade da implicação material?

Enquanto a pergunta 3) é facilmente respondida dado a Lógica de escolha, a pergunta 4) não pode ser respondida pela mera escolha da Lógica de preferência, pois ela questiona justamente qual Lógica devemos escolher.

Essa classificação não distingue disciplinas com grandes diferenças, como Educação Física e Química, pois perguntas de ambos os campos podem ser resolvidas através de testes empíricos. Podemos testar respostas para ambas as perguntas: começar agachado uma corrida de 100 metros rasos diminui o tempo de execução da prova? Como líquidos iônicos são usados na natureza? Contudo, o que essa classificação faz é mostrar como diversas perguntas não são respondidas por outras disciplinas pelo método de solução empregado não ser o mesmo. Além disso, certas perguntas não podem ser solucionadas por testes por exigirem anteriormente um escrutínio sobre os conceitos que são usados nas perguntas. Pode-se dizer nesse sentido que a Filosofia trata de problemas conceituais, enquanto as outras disciplinas utilizam os conceitos sem precisar problematizá-los. Por exemplo, em uma aula de Física não precisa haver uma explicação não-circular do que é o tempo. Pois dada uma certa aplicação, como calcular uma velocidade média, a expressão que fornece a solução V=D/T (velocidade média é a distância dividida pelo tempo) já fornece o que é o tempo: T=D/V (o tempo é a distância dividida pela velocidade média).

Essa classificação também pode aponta outro ponto sobre a especifidade da Filosofia. Na maioria das disciplinas existem muitas respostas substanciais e consensuais (RSC, para abreviar) para seus problemas concretos e poucas questões abertas (QA, para abreviar) a serem trabalhadas, assim sendo, o ensino em nível médio dessas disciplinas pode ser voltado para a transmissão das RSC, e geralmente as QA ficam para serem trabalhadas dentro da faculdade em programas de pesquisa. Com Filosofia ocorre o contrário, temos poucas RSC [4] e muitas QA. Essa especificidade é um outro motivo para quereremos que a Filosofia esteja presente como disciplina dentro do currículo, pois permite um espaço para discussões de QA quase sempre ausente em outras disciplinas. E por que é bom discutir QA? Pois em diversos momentos de suas vidas os alunos não poderão facilmente responder questões recorrendo a testes ou conjunto de regras, (decidir se e como votar, como se posicionar perante uma discussão sobre fundamentos de algo, escolher se devem arriscar sua vida por algum motivo, qual carreira devem seguir etc.) e será melhor que eles já tenham tido esse tipo de experiência.

Passemos à segunda classificação, que ao contrário da primeira, já é voltada para classificar os conteúdos do currículo escolar do ensino médio brasileiro. Essa se encontra na seção Por uma outra taxonomia das disciplinas escolares (ROCHA, 2012, pp. 39-43), e ela é uma “outra” taxonomia pois Rocha está se opondo a classificação contida nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM, para abreviar).

A divisão do OCEM tenta capturar algumas características mais de senso comum sobre as disciplinas. Há três agrupamentos: o primeiro grupo reúne as áreas das linguagens, como Língua portuguesa e estrangeira, Literatura, Artes e Educação Física;  o segundo grupo reúne as áreas nas quais explicações fornecidas podem ser formalizadas matematicamente, e isso incluirá a Física, Química, Biologia e Matemática que são comumente chamadas de Ciências Exatas [5]; e o terceiro, as áreas menos matematizáveis, como Filosofia, Geografia, História e Sociologia, normalmente chamadas de Ciências Humanas. (Esses agrupamentos de disciplinas estão, respectivamente, nos volumes 1, 2 e 3 das OCEM).

Para Rocha, esses agrupamentos deixam de fora aspectos importantes de certas disciplinas, em especial da Matemática e da Filosofia. Sua classificação terá como orientadora as curiosidades que essas disciplinas podem atender. As ciências naturais responderiam curiosidades sobre o mundo de um ponto de vista que desconsidere o ser humano (“as gentes” em sua expressão), por exemplo, podemos estudar movimentos planetares e fotossíntese sem incluir nesses estudos informações a respeito de seres humanos. As ciências humanas estudariam questões onde informações sobre seres humanos são essenciais, como saber por que foi criada uma divisa territorial entre nações, ou como certas populações desenvolveram as primeiras cidades. A matemática fica de fora por não tratar de curiosidades diretamente sobre o mundo, mas de aspectos formais dele. Por exemplo, podemos usar os mesmos cálculos para determinação do tempo de migração de uma espécie de aves como a de humanos em um período histórico. Os cálculos são indiferentes quanto ao conteúdo sobre o qual podem operar, e por isso formais. Pode haver uma diferença motivacional entre os processos migratórios de aves e humanos, mas os cálculos para determinação da duração não levam isso em conta.

Por fim, ficamos com a Filosofia separada das outras disciplinas. Como ela não é uma ciência, já era de se esperar que ela não ficasse agrupada com o grupo de ciências humanas. (Esse aspecto que a diferencia também pode ser observado nas nossas considerações anteriores entre RCS e QA) Para Rocha a Filosofia no Ensino Médio tratará das curiosidades sobre outras disciplinas, e nela haverá o espaço para se tratar de curiosidades humanas que se não “forem acolhidas na aula de Filosofia, elas ficam sem tratamento no ambiente escolar” (idem, p. 43).

O quadro comparativo fornecido por Rocha (idem, p. 42) é o seguinte:

 

Classificação OCEM Curiosidades humanas fundamentais
Ciências da Natureza, Matemática: Física, Química, Biologia e Matemática Como é o “mundo” sem as gentes?

Curiosidade sobre a natureza: Física, Química e Biologia.

Ciências Humanas: Filosofia, Geografia, História e Sociologia Como é o “mundo” com as gentes?

Curiosidades sobre o mundo enquanto habitado e construído por gentes: Geografia, História, Sociologia e Psicologia

Linguagens, Códigos e suas tecnologias: Língua Portuguesa e Estrangeira, Literatura, Artes e Educação Física Curiosidades sobre nossas capacidades compreensivas e expressivas: explorações de si-mesmo, enquanto mente e corpo: Linguagens, Artes e Educação Física.
Curiosidades sobre os aspectos formais da realidade.

Matemática, uma ciência sui-generis.

Curiosidades sobre todas curiosidades acima: Filosofia.

 

Rocha defende que os conteúdos que devem ser abordados em aulas de Filosofia sejam interdisciplinares, abordando conceitos que aparecem em outras disciplinas, mas que não são tematizados nelas. Reutilizando um exemplo, em Sociologia é possível estudar os níveis de felicidade em diversos países e quais seriam suas causas, ao passo que em Filosofia se estudaria o que é a felicidade. Rocha fornece alguns exemplos de como realizar esse trabalho conceitual (idem, pp. 49-52), mas nosso objetivo com essa apresentação de estrutura curricular é mostrar o que há de único na Filosofia, para então mostrar como esses aspectos únicos satisfazem os objetivos traçados por Lei. Passemos à análise dela então.

 

A parte de conclusão deste ensaio será uma análise dos parágrafos da legislação brasileira referente aos objetivos do ensino médio, e de como a disciplina de Filosofia melhoraria o currículo como um todo segundo tais objetivos. A lei está escrita de modo geral para que as diretrizes que virem a ser feitas a partir dela possam ter certa liberdade. É dentro dessa liberdade que estará nossa argumentação em favor da existência da disciplina de Filosofia dentro dos currículos, pois como as duas análises que fizemos sobre o lugar da Filosofia dentro de currículos mostram, ela possui um campo de investigação único a ela e benéfico aos estudantes. Passemos aos objetivos do ensino médio:

§I – a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos;” (BRASIL. Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996)

Esse parágrafo parece não fornecer razões positivas para a obrigatoriedade do ensino de Filosofia como disciplina; como ela não se encontra como disciplina obrigatória no ensino fundamental (embora possa ser ofertada), não há garantia de que existam conhecimentos filosóficos adquiridos para serem consolidados e aprofundados. Alguns conteúdos de carácter filosófico podem ter sido abordados no ensino médio, numa aula de História podem ter discutidos se o que uma nação fez com outra foi justo, ou numa aula de Ciências, a extensão do conceito de espécie pode ter surgido para saber quando um conjunto de seres vivos de uma determinada espécie se torna outra.

A “consolidação” desses conhecimentos pode sem dúvida ser feita em momentos especiais dentro das disciplinas que já existem, obrigatoriamente, no ensino fundamental. O mesmo não pode trivialmente ser dito sobre o “aprofundamento”. O aprofundamento pode tanto ser dado de maneira simplesmente interna à disciplina, como na matemática quando se aprendem novos procedimentos para solução de problemas mais complexos, ou quanto a uma maior compreensão sobre quais e como operam tais procedimentos.

O melhor lugar para esse aprofundamento de compreensão ser trabalhado é em aulas de Filosofia, pois é nela que há espaço para o aprofundamento do conhecimento sobre conceitos interdisciplinares. Tomemos diferentes alegações causais: ações humanas estão causando o aquecimento global; menor incidência de luz solar causa a migração de aves; o assassinato de Francisco Fernando causou o início da Primeira Guerra Mundial; aquecimento de metais causa sua dilatação. Estaria o conceito de “causa” sendo utilizado no mesmo sentido nessas diferentes alegações? A resposta a esse tipo de pergunta e o atendimento a essa curiosidade só se dá, com garantias, em uma disciplina de Filosofia.

§II – a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores;” (idem)

Como pessoas podem trabalhar com Filosofia, ela já poderia ser considerada como necessária para contemplar este objetivo. O problema dessa resposta é que ela poderia usar a generalidade da lei para dizer que qualquer disciplina devesse estar inclusa nos currículos de ensino médio, podendo-se argumentar que a Astrologia devesse constar no currículo. Como Astrologia é algo que “se aprende” ela pode ser considerada um saber.

Contudo, podemos argumentar de modo mais específico utilizando as classificações feitas anteriormente. Para garantir que a pessoa continue aprendendo questões de certo tipo e que envolvam curiosidades exclusivas a Filosofia, é preciso que haja um espaço garantido que atenda essas exigências.

§III – o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico;” (idem)

Esse parágrafo é que mais diretamente requereria a inclusão da disciplina de Filosofia nos currículos do Ensino Médio. “Ética”, “pensamento crítico” e “autonomia intelectual” podem sem dúvidas ser desenvolvidas em outras disciplinas: discentes precisam pensar criticamente para fazer comparações literárias; precisam de conhecimento de ética para entender por que não podem violar regras esportivas, e assim obter sucesso; e em casos com múltiplos desenvolvimentos para soluções de problemas, como diferentes maneiras de se calcular áreas geométricas, precisam desenvolver uma autonomia para além das maneiras exemplificadas para que resolvam questões além das quais já viram as respostas.

Apesar dessas aplicações em outras disciplinas, é na disciplina de Filosofia que se aborda esses temas diretamente e onde há um espaço para juízos sobre os juízos feitos nas outras disciplinas. Na alegação “no futebol é errado para jogadores de linha evitarem gols utilizando as mãos” o conceito “errado” é corretamente usado, mas não há nada que nos diga por que é errado. Poder-se-ia dizer que é errado por ser contra as regras do jogo, mas isso só traz outra questão: por que é errado quebrar as regras de um jogo? Ou ainda para a questão: o que torna algo errado? São em aulas de Filosofia que essas questões são diretamente abordadas, ou seja, pelo §III devemos incluir Filosofia como uma disciplina nos currículos escolares. Embora seja possível abordar esses conteúdos especificamente filosóficos em outras aulas, eles prejudicariam as outras disciplinas pois são conteúdos não requeridos para o sucesso nelas: um zagueiro não precisa uma definição de “errado” para ser um bom zagueiro, ele pode ser uma pessoa cruel com seus colegas e ainda assim jogar bem futebol.

§IV – a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina” (idem)

É somente no parágrafo acima que a expressão “processos produtivos” é utilizada nessa lei, e não fica muito claro se esses são: (a) quaisquer processos que produzam quaisquer coisas [6]; ou (b) os processos produtivos das próprias disciplinas [7]. No caso de (b), qualquer disciplina estaria justificada a estar em sala de aula, pois em todas há um processo que produz seus conhecimentos e é benéfico que discentes estejam cientes de como se produz o conhecimento que aprendem. Como a Filosofia é uma disciplina que produz conhecimentos, ela também é acolhida pelo §IV na leitura (b). A leitura (b) é um caso especial da leitura (a), e por isso, há novamente um motivo para incluirmos a Filosofia nos currículos. O motivo é suficiente para a inclusão ser como uma disciplina? Sim, pois parte do conhecimento necessário para a compreensão dos processos é de cunho filosófico. Deixemos de lado o caso sobre a produção de conhecimento filosófico, onde é evidente a necessidade da Filosofia. Se a compreensão exposta no §IV requer aprofundamento sobre conhecimentos, e não imagino por que não requereria, as considerações do §I retornam, e assim como lá, deveríamos querer Filosofia como uma disciplina curricularmente obrigatória.

O que este ensaio pretendia era mostrar como a especifidade da Filosofia deveria lhe garantir um espaço dentro do currículo do Ensino Médio. Como currículos atendem a objetivos, buscamos mostrar como os objetivos que a legislação brasileira atribui ao Ensino Médio podem ser alcançados através dos conteúdos específicos a serem trabalhados em aulas de Filosofia. Para mostrarmos que a disciplina de Filosofia ajuda a promover os objetivos legais precisávamos fazer certa análise dos objetivos, e é bem possível que leitores discordem da nossa análise. O que é bom, pois a Filosofia, como disciplina, fornece diversas ferramentas de análise conceitual. E um bom conhecimento de Filosofia ajudaria também a argumentar contra a obrigatoriedade da disciplina no Ensino Médio, analisando as expressões utilizadas  na lei de modo diferente. Parece que para ser contrário à obrigatoriedade da Filosofia precisamos filosofar, então não seria bom que ela fosse obrigatória no currículo?

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Notas

[1]Pode-se criticar essa concepção curricular holista? Acredito que sim, desconheço críticas diretas, mas há algumas que podem ser feitas quanto a execução de atividades interdisciplinares. Por exemplo, pode-se argumentar que um currículo holista traria atividades que gerariam confusões conceituais nos alunos, ou ainda que poderia fazer com que alunos trabalhassem com temas com os quais não dominassem, e assim não aproveitassem o conteúdo. Como essas críticas dizem mais respeito a execução das atividades, não acho necessária tratá-las aqui, pois para resolvermos as execuções das atividades devemos melhorar a execução das atividades, e isso independentemente da proposta curricular. Ou seja, esses problemas deveriam surgir para estimular respostas em quaisquer contextos onde o planejamento didático é fraco.

[2]Adaptado da palestra “Avaliação em Filosofia: Conteúdo e Competências”, proferida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 26 de Abril de 2012.

[3]Os insucessos dessa adaptação cabem apenas ao autor que aqui escreve.

[4]Há tanto respostas consensuais quanto respostas substanciais para problemas filosóficos, mas poucas que sejam tanto consensuais quanto substanciais. Alguns exemplos de RSC em Filosofia são o princípio de não-contradição, a insuficiência da indução para juízos sobre o futuro e a impossibilidade de algumas provas ontológicas devido ao caráter quantificacional (e não predicativo) de “existir”. Mas essas são poucas para que o ensino médio inteiro seja voltado a elas, e dado as amplas possibilidades de investigação de problemas filosóficos não parece muito sensato nos restringirmos a esses casos só por serem RCS.

[5]Vale notar que essa caracterização de “poder fornecer respostas formalizadas matematicamente” não se aplica tão facilmente. Primeiro há um problema de gradação do quanto as respostas podem ser formalizadas, Num extremo temos a Matemática onde todas respostas são formalizadas. Na química e na física, no meio dessa gradação, já temos considerações conceituais sobre as operações que utilizam tais conceitos. Em uma formalização como V=R*I (a tensão é igual à resistência multiplicada pela corrente) podemos simplesmente atribuir valores as variáveis e calcular qual seria uma resposta. Contudo, parte do que a Física faz é fornecer uma interpretação do que “V”, “R” e “I” significam, e então temos um problema não passível de solução através de formalização matemática. Indo mais adiante temos a Biologia, que possui soluções formalizáveis, como as fornecidas para cálculos de genéticas de população. Mas também temos toda a parte da Biologia Evolutiva que se ocupa do fornecimento de narrativas históricas para a compreensão de quais foram as pressões seletivas agindo em uma população de seres vivos.

[6]Por exemplo, para conhecer a produção de cerveja, as disciplinas (biologia, química…) relacionariam conhecimentos teóricos (ciclo de vida de plantas, ponto de ebulição de diversos líquidos…) com conhecimentos práticos (como funcionam colheitadeiras, quais formas adequadas para aquecimento de líquidos…), de modo que seriam capazes de fornecer uma explicação completa do processo produtivo de cerveja.

[7]Nesse caso, explicar como uma área de conhecimento produz conhecimento, salientando como se dá a interação entre os aspectos teóricos e práticos da área em questão; como pesquisadores através de teorias chegam em resultados e/ou como resultados afetam teorias.

BIBLIOGRAFIA

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.

BRASIL. Orientações curriculares para o ensino médio. Brasília: MEC, Secretaria da Educação Básica, 2006.

ROCHA, R. P. Ensino de Filosofia e Currículo. Santa Maria: Editora UFSM, 2015.

Augusto Lucas Valmini é licenciando e mestrando em Filosofia na UFRGS.

 

Clipping do dia

Mesmo com outros afazeres acadêmicos pressionando o dia, não pude deixar de dar sequência às postagens que andei fazendo nos últimos, sobre as reações a essa espécie de fruto postiço do governo atual, cujos atos não são legitimados pelo sufrágio, nunca é demais lembrar.

Pois, eis as últimas e a meu ver relevantes notícias:

A primeira é de ontem à tarde, saiu na Falha de São Paulo. A manchete afirma “MEC rebate críticas e já fala em reforma do ensino médio só para 2019”.

(Note, por favor, o uso da voz passiva no quadrinho ao final do texto: “Governo, que diz que valor [dos investimentos para que o EM passe a ser em tempo integral] vai depender da disponibilidade orçamentária, vive momento de cortes.” Como era mesmo a estória do que se guarda numa gota de gramática?)

A segunda é de ontem à noite, saiu no site da Câmara, e a manchete diz: “Debatedores divergem sobre medida provisória da reforma do ensino médio”.

Desta destaco o mote para a próxima: “Por coincidência, a audiência pública na Câmara ocorre no dia em que foram divulgadas as notas por escola do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2015. O resultado reforça a preocupação com a crise de qualidade dessa fase escolar: – queda nas notas médias dos alunos em linguagens, matemática e ciências da natureza; – 38% das escolas avaliadas com nota abaixo da média; – das 100 escolas com maior nota média, 97 são privadas;”

A terceira também é de ontem, saiu no Nexo Jornal, manchete: “O ranking das melhores escolas do Enem: o que ele mostra e o que ele esconde”.

Basicamente, o que o ranking esconde é que a amostra não contempla 60% das escolas públicas do país, que ficaram de fora do exame. Agora é só brincar de juntar os pontos.

Do site Rede Brasil Atual nos vem a seguinte notícia – que seria positiva se pudéssemos contar com a avaliação adequada do nosso Procurador Geral – de que “Procuradoria recomenda a Janot defender inconstitucionalidade da MP do ensino médio”.

Aqui por PoA teve atos contra as medidas do governo, incluindo especialmente a MP do EM, no IFRS e na UFRGS.

Sexta vai ter ato em defesa da educação, organizado pelo IFRS da Restinga e domingo um ato no tradicional Brique da Redenção.

Colegas do curso de Letras/Espanhol escreveram um Manifesto contra a MP 746/2016, que pode ser assinado por aqui.

Colegas da UFSM (não só da filosofia) também organizaram um debate sobre o tema, vai acontecer na sexta-feira.

Não pude fazer um clipping de hoje, nem sei se conseguirei fazer amanhã, pois é dia de aula sobre a álgebra universal em Leibniz, que tema fácil este não é.

Para terminar, deixo a informação que acabo de ler pelo perfil de Twitter do Professores Contra o Escola Sem Partido: “Foi instalada na Câmara dos Deputados comissão especial para o ‘escola sem partido'” – isso quer dizer que vai tramitar mais rápido esse descalabro pedagógico, social, e jurídico. Oxalá essa nota técnica do MPF seja levada a sério. Do contrário, estamos num mato sem cachorro, como gosta de dizer o gaudério.

Do outro lado

(E sem cachorro tudo é muito pior.)