Uma carta para Márcia

Claremont, 15 de maio de 2023.

Márcia, querida

Já faz um tempinho que queria te escrever mais uma carta, depois daquela primeira que enviei há alguns meses, e hoje tu publicaste a carta aberta a Janja – que me comoveu. Então, retomo a conversa por meio desse meu blog empoeirado. Coisa boa que é mover as coisas, limpar, mudar tudo de lugar. Herdei o hábito de minha avó, da re-volta, refazenda da vida doméstica no gesto de trocar os móveis de lugar a cada pouco.

Tu sabes que eu te admiro as coragens e as fibras. 

Mas cada vez que novamente eu leio ou assisto as coisas que as pessoas (quase todos indivíduos machos da nossa espécie) dizem de ti, do que pensas e dizes, do teu fazer no mundo, aquele meu casal que vive na sete em Libra, Marte e Palas, se alvoroça por uma peleiazinha. E justamente porque agora vejo meu mapa povoado também pelas “asteróidas” (conversa pra outros dias: tínhamos que chamá-las “as planetas”!), não fiz mais do que postar hoje mais cedo, no Twitter, o link pro teu texto, incluindo um breve comentário:

Quer dizer, amiga, como se diz em gauchês, “me aguentei” pra não brigar por lógica.

Fiz almoço escutando notícias do Brasil, e comentários tipo: NOOOOSSSA, a familícia agiu como mi-LÍ-cia quando alcançou os picos do poder pelo qual sempre, e unicamente, trabalharam a vida toda! E eu ainda assisto? Pior que sim. E ainda uso o Twitter.

Depois do almoço jardinei um pouco e ainda fui comprar comidas; enquanto esperei minha carona no café-ao-lado-do-hortifruti, avancei mais umas páginas na lida com o livro do Shah. Sabedorias ancestrais a gente não despreza, né?

Voltei pra casa, transplantei umas mudas grandes de Artemísia da horta pro jardim da frente (as mudas que plantei no final do outono estão virando duas árvores, guria, uma das quais estava sufocando meus alhos e cebolas!), comi bergamota e só agora às seis da tarde é que sento pra te escrever. Quero te contar como eu leio o causo em questão – ou, melhor, como eu entendi o processo de criação desse causo – e com isso te convidar pra conversar, de amiga pra filósofa e vice-versa. Vamos?

A Maior Artemísia do Meu Jardim

Flor, tive de parar ontem porque deveres doméstico se impuseram. Agora são 11:09 do dia 16 de maio, e os mesmos deveres (mais a notícia de que meu cachorro está hospitalizado) me tomaram quase toda a manhã. Porque eu considero dever cuidar do meu jardim, que está cheio de cebolas florescendo e eu estava estudando como lidar com esse fenômeno. Aparentemente não terei cebolas este ano, mas muitas, muitas sementes para plantar quando for a época.

Então, de ontem pra hoje eu li mais um texto sobre o causo, da Laura Astrolabio, no Instagram. Mas como eu não pretendia falar sobre o ponto do texto dela (que é a legitimidade da existência mesma do cargo de Primeira-Dama), que é também parte do teu, não vou comentar. Não, pera, só uma coisinha: ela diz que tu falaste do cargo de Primeira-Dama em um texto, mas foi na entrevista ao UOL (e em outras), ou tu escreveste algo antes disso que eu não li? Seja como for, tu deves estar se perguntando: “Mas se não é sobre isso (a “função Primeira-Dama”), então sobre o que vamos conversar?” E eu te respondo que queria começar sublinhando o que me parecem ser algumas pressuposições de algumas das coisas que disseste na entrevista que provocou todo esse ti-ti-ti ridículo. É muita má-fé tomar o que tu disseste como indício de que estarias querendo “derrubar Janja” (não vou inserir hiperlinks pra isso, que não quero dar cliques pros canalhas). Pra ti, este é mais um capítulo da perseguição que vens sofrendo há anos, por gente de fora e de dentro do campo progressista, e que te levou ao exílio. Pra mim, que já te achei uma chata no passado e hoje entendo melhor de onde vinha essa impressão, hoje que te conheço pessoalmente e posso me dizer tua amiga, hoje que eu não tenho mais medo de ser considerada chata, este é um momento de compartilhar contigo meu modo de entender algumas discussões feministas.

Começo observando aqui o que disse no meu tweet, que a tua foi uma colocação hipotética, condicional. Dessas que qualquer uma que já tenha tentado ensinar lógica sabe bem como é difícil (cada vez mais difícil) transpor aos estudantes. Vou voltar a isso adiante. Por ora observo que se já não é fácil para muita gente entender uma afirmação condicionada pela outra (tipo “Se chover, então levo o guarda-chuva” – sendo que podes também levar se não chover, ou se não souber se vai ou não chover) – as coisas ficam mais complicadas quando se afirmam duas condições ou hipóteses antes de outra, como em “Se chover, e se estiver frio, então levo guarda-chuva.” E foi exatamente esta a tua resposta a uma pergunta da Milly Lacombe. Disseste “Se eu for bastante radical, e se eu fosse a Janja, [então] renunciava a esse cargo de primeira-dama e ia fazer alguma coisa realmente mais revolucionária”.

Vê, Márcia, todo o causo depende de uma leitura dessa tua afirmação, ou melhor, do modo como ela foi lida pelos editores do UOL (que escolheram a manchete Se quer revolução, renuncie ao posto de primeira-dama.). E, evidentemente, de como ela foi sendo relida e replicada em/por outros veículos – uns mais outros (bem) menos sérios. O que eu te proponho revisitar, de início, é a pergunta que te endereçou a Milly (cacoete filosófico meu, esse de não responder as perguntas antes de pensar nos termos em que ela foi feita, pra ver se não tem ali algum pressuposto problemático, com o qual não quero me comprometer, ou mesmo um intencional pega-ratona).

 Degravei, do trecho de vídeo selecionado pelos editores para abrir o texto:

A simples menção do nome “Janja” provoca uma loucura coletiva, né, e aí a gente mistura com misoginia, com machismo – a gente sabe o que a Dona Marisa passou, né, mas só que Janja vem aí com uma potência revolucionária, né. Eu escrevi um texto outro dia em que, assim, mulheres com libido e transantes incomodam muito mais, né. Como você tem visto o papel da Janja.. Que revolução ela pode ainda imprimir nessa função [de Primeira-Dama].

Agora, a tua resposta aceita sem discussão a premissa da Milly, de que há uma potência revolucionária na figura da Janja, como primeira-dama (tese com a qual eu concordaria, não é esse o ponto). Mais do que isso, a Milly deixa claro que essa potência se relaciona ao fato de Janja emanar uma energia de mulher transante, que expressa sua libido de um modo que perturba muito os humanos não ou pouco transantes desse mundo. O problema principal com a tua resposta, a meu ver, é que nela todas as palavras conectadas com a ideia de revolução não têm a mesma carga semântica a ela atribuída pela jornalista. O teu sentido de “revolucionário” se associa ao teu feminismo, radical, que até onde entendo ainda não discute questões de política da libido transante. Me engano?

UFRGS – Campus do Vale numa tardezinha qualquer

Ora, sabemos que Janja se considera e é considerada feminista. Sabemos (e tu muito mais e melhor do que eu) que os feminismos são múltiplos, variados histórica e socialmente, e por vezes até conflitam entre si – mas nunca no caroço, que é o mesmo: pleitear o reconhecimento e a reparação das inequidades que nos apagam, esmagam, oprimem e matam simbólica, financeira, espiritualmente, pra dizer bem pouco. A Janja, até onde eu sei, jamais se quis revolucionária. Das poucas entrevistas que eu vi dela, como a que ela concedeu para a Emissora em 13 de novembro de 2022 (você assistiu?), ela se diz uma sonhadora pé-no-chão que pensa em problemas importantes pro mundo e que agora está tendo a oportunidade de contribuir para algumas das mudanças que o Brasil e o mundo exigem. 

Ela é socióloga, né, trabalhou com questões de sustentabilidade das comunidades indígenas na região de Itaipú, e diz que considera que sua militância se fez muito mais no campo profissional do que no político. Eu estou trazendo esses elementos aqui pra gente não falar dela de forma caricatural, como os entrevistadores parecem ter te induzido a fazer, e vestir a Janja com o espartilho da posição inessencial e subalterna (tuas palavras) de primeira-dama. (Se e quando a gente for conversar sobre “o que é isso, ser uma primeira-dama?”, eu gostaria de estudar mais antes, tá?) Tudo o que eu tenho acompanhado das ações de nossa primeira-dama me mostra que é distorção demais falar dela, e da função dela, como a pessoa que ajuda o Lula a virar as páginas dos seus discursos. Sim, ela faz isso – porque oxalá faz o que quer – mas ela também se engaja sobremaneira nas questões políticas (tanto que é detestada por companheiros e companheiras de todas as querências). Mas, mais do que isso, e muito importantemente: ela não é uma feminista radical como tu. E, ainda assim, o potencial revolucionário dela como primeira-dama está na cara, amiga, é só acompanhar um pouco! Não existisse esse potencial, ela não seria alvo, como tu tantas vezes foste e ainda é, de tantas falsificações que a desenham como “muito metida”, “muito feminista”, “não sabe seu lugar” etc..

A tua reação ao que entendo como bait da jornalista foi a de primeiro tentar separar a Janja-pessoa da função ou cargo de primeira-dama, o que eu não objeto. Só que, a seguir, tu dizes que se ela, Janja, caso fizesse o que tu farias no lugar dela e renunciasse a seu cargo, daria um salto na cultura, um empuxo forte, né, ou melhor dizendo um impulso forte pra cultura feminista. (Teu ato-falho é importante, mas eu quero focar em outra coisa).

É que, minha cabeça de professora de lógica, essas tuas inferências são instâncias de fórmulas condicionais gerais como “eu, no teu lugar, faria x”, “eu, se fosse tu, não aceitaria y”, “eu, se fosse ela, daria uma pirueta naquela hora” – que eu considero como vícios de linguagem/pensamento daqueles que temos e nem sentimos. Mas eu não gosto de engolir sem mastigar, e fico feliz por ter a chance de, nessa carta, contar a ti e aos leitores do meu blog que há um tempo já eu penso assim: usar esse tipo de expressão não tem sentido lógico, pelo simples fato de que se eu fosse tu, eu seria tu, não eu e, assim, agiria exatamente como tu ages. E aqui a lógica e a gramática dão as mãos (tô aqui lembrando do capítulo do velho livro de Copi sobre as funções da linguagem, onde ele distingue funções lógicas e funções gramaticais da linguagem). Porque apesar dessas estruturas frasais parecerem expressões lógicas condicionais ou hipotéticas, o “se… então…” nelas não possuem função lógica, de amarração das condições de verdade do antecedente e do consequente (como eu sugeri no meu tweet), mas têm uma função modalizadora, quer dizer, são um artifício que quem as emprega utiliza para dar conselhos, ou mesmo ordens.  E é talvez por isso que a frase que os editorialistas escolheram pra manchete é o teu dito no modo imperativo. Quando eu a li pela primeira vez, pensei: garanto que distorceram o que a Márcia disse! Mas, infelizmente, esse não é o caso.

Porque a implicatura conversacional do teu dito é a de aconselhar a Janja, não a de discutir o que a função de primeira-dama representa. Se fosse isso, a conversa talvez não soasse condescendente como soou a tantos ouvidos – alguns dos quais são ouvidos de mentes sedentas por clique, como as que que te acusam de algum conluio contra a primeira-dama. O tom de que falo me ressoou forte quando disseste que, se fosses ela, iria cuidar da minha vida e fazer coisas muito revolucionárias. Mas, de novo, se tu fosses ela, não seria revolucionária! Depois, dizes:  

Quer fazer uma revolução? Larga disso; vai ter uma vida própria, vai pro seu trabalho… Sair do papel da esposa que apoia, eu acho que é importante pras esposas do Brasil. Então, se ela quer servir de exemplo, eu me proponho a fazer toda a assessoria (risos)…

(Chiste importante, penso eu, mas volto ao meu ponto.)

Ocorre que Janja não quer fazer revolução. Ou quer? Quem fala em potencial revolucionário é Milly Lacombe! Amiga, eu acho que caíste numa sorte de arapuca.

Independentemente disso, é obvio que eu posso te imaginar argumentando assim: Gisele, o que eu defendo é que não é possível ser uma feminista radical e uma primeira-dama, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, pra lembrar o Estagirita. Concordo. Mas em algum momento tu dizes que ser feminista e ser primeira-dama são coisas que não combinam – o que é diferente, pois nesse caso a implicatura é que só há um modo de ser feminista, o que sabemos que é falso, e um modo de ser primeira-dama, igualmente falso (na mesma entrevista, as coisas que dizes da Micheque evidenciam isso, certo?)

Então, eu gostaria que a gente pudesse conversar sobre o que é o melhor sentido desse termo [feminista radical] que tu utilizas pra te descrever. Porque eu concordo contigo sobre precisarmos colocar as mulheres num outro patamar na política brasileira, na cultura, na história, em todos os lugares, mas no entanto não fico confortável com uma feminista tão vocal como tu diga à outra que, se fosse ela, tomaria uma atitude drástica, eu diria, vou cuidar da minha vida… e iria construir uma história com as mulheres brasileiras. Meu desconforto vem, primeiro, pelas razões lógico-gramaticais que apontei antes, mas depois porque dizer isso é sugerir, novamente por implicatura, que ela não está, como esta primeira-dama poderosa que ela já é, sendo um modelo (e um bom modelo, a meu ver) para as esposas do país. Nem que “ser uma grande mulher por trás de um grande homem” seja incompatível com uma postura feminista. Isso me toca muito pessoalmente, sabe Márcia… 

Sol na 4 guarda seus papéis de carta, pois sim.

Tu sabes que eu optei, e estou vivendo de acordo com esta opção há um tempinho, por estar no papel da mulher que apoia seu homem (cuida da maior parte das praticidades miúdas da vida, dedica tempo e disposição ao estabelecimento das melhores condições para que ele deixe frutificar todas as flores deu seu brilhante intelecto, apoia e critica como intelectual de capacidade equivalente…). E tenho certeza de que se tudo o que tu disseste sobre Janja/Primeira-Dama fosse endereçado a mim, uma esposa brasileira, à função que eu escolhi desempenhar (primeira-dama do meu lar), eu ficaria chateada. Eu sentiria como se tu estivesses invadindo um espaço de autonomia que eu levei anos pra habitar, e para o qual que os feminismos me empoderaram à beça, em especial porque me colocaram em contato com outras, e até em situação de amizade com uma das mais famosas feministas do Brasil – uma que diz que feminismo é o contrário da solidão.

Vamos, sim, querida, ressignificar os lugares das mulheres nesse país. Mas eu gostaria de fazer isso sem ser, e nem ver outras sendo alvo de condescendências das companheiras de caminhada. Os abutres estão por todo lado, a gente precisa ficar atenta aos seus estratagemas, arapucas e quetais.

Há revoluções e revoluções; muitas em potencial. Se elas parecerem se contradizer, como quando uma feminista se torna primeira-dama, bem, a gente tem todas as ferramentas para examinar cada caso, não generalizar nem homogeneizar as formas de vida feministas, e quem sabe até encontrar um modo paraconsistente de nos aceitarmos como somos – quer dizer, sem que possamos inferir n’importe quoi das contradições que encontrarmos no caminho.

Potências são como sementes. Elas precisam de cuidado pra não serem perdidas por causa da desatenção da jardineira (hoje mesmo eu aprendi que o ramo de arruda que colhi outro dia não vai me dar as sementes que eu queria, porque precisava de mais umas semanas antes da poda…)

Me conta o que sentes e pensas dessa partilha de ideias?

Um abraço bem apertado de saudades e sempiterna admiração,

Gisele

Claremont, 16 de maio de 2023.

As florzinhas das cebolas que plantei no início da primavera.

P.S.: Vê como é a Palas em Libra, conjunta ao Marte? Acho que é bem como a do Klimt.

Me aguentei contra os que te injustiçam, mas não contra o que percebo como alheio à (alguma) lógica.

Mas não se perca de mim, não desapareça

Resposta a uma Coluna ANPOF

No dia 11/05/2023, o colega de profissão Luís Fernando Crespo teve pulicado, na aba “Coluna ANPOF” do website de nossa Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia, o texto “A falácia da dificuldade da matemática”.

Escrevi a carta abaixo como uma resposta. Como ela tem o dobro do tamanho limite dos textos a serem publicados como colunas, estou retomando as atividades do blog para publica-la.

(Outra razão para publicar a carta aqui é que posso inserir hiperlinks.)

Carta-resposta a Luís Fernando Crespo

por Gisele Secco

Oi Luís Fernando

A gente não se conhece. Me chamo Gisele, sou professora do departamento de filosofia da Universidade Federal de Santa Maria, no momento usufruindo de uma licença não-remunerada e vivendo fora do Brasil. Acabo de ler sua manifestação na coluna ANPOF de 11 de maio de 2023 e resolvi escrever no estilo démodé de interação filosófica que aprecio tanto, a carta. Em Humano demasiado humano, Nitzsche afirma que o diálogo, assim como a troca epistolar, é a “conversa perfeita”, pois nessas interações “tudo o que uma pessoa diz recebe sua cor definida, seu tom, seu gesto de acompanhamento, em estrita referência àquele com quem fala.” A gente não se conhece, e é por isso que inicio esta carta justificando a resolução de escrever uma carta, que apesar de pública é endereçada a você (ou vice-versa?). A gente não se conhece, e isso me desafia a encontrar a cor e o tom adequados a este desconhecimento, mas sem desrespeitar o sentimento de obrigação que de imediato se me acometeu, de reagir ao teu escrito.

É que, desde o lugar de onde eu leio as tuas considerações (ah: não leve a mal a alternância de tratamento, entre “você” e “tu”; não é desrespeito, mas coisa de gaúcha), elas me soam estranhas, de diferentes maneiras. Vou, então, tentar te contar as razões de meu estranhamento, te fazer algumas perguntas e me colocar à disposição para seguirmos a conversa – se ela for sobre critérios de organização curricular no contexto da educação escolar e, em especial, sobre os papéis da filosofia e da matemática neste contexto.

 

Esse condicional se relaciona com meu primeiro estranhamento, porque você começa anunciando seu lugar, ao lado da filosofia e das demais disciplinas preteridas “em número de aulas, seja na importância dada dentro do conjunto.” Do conjunto do currículo escolar, é de se presumir. Tua leitora, então, infere que o tema do texto é a questão da distribuição/hierarquização das disciplinas nos currículos, o que fica evidente quando anuncias o teu segundo ponto, que eu não entendi. Explico: acabaste de nos informar que o tema do texto é de natureza curricular, mas de imediato nos dizes que uma das disciplinas do currículo, a matemática, é tão importante quanto as demais porque do contrário estarias reproduzindo algo da ordem social mais ampla, ou seja, relações entre opressores e oprimidos. Estás sugerindo, portanto, uma analogia entre componentes curriculares e indivíduos (ou grupos de indivíduos) em interações sociais “em geral” – analogia que se faz explícita no teu terceiro ponto, pelo qual localizas a matemática num espaço curricular de opressão, como opressora. Mas eu falho em ver a plausibilidade da analogia, porque você não explicita em que sentido uma disciplina (ou componente curricular) pode ser opressora do mesmo modo que pessoas ou instituições. Parece que você está pressupondo o mesmo que a Andrea Nye quando, em seu livro de 1990, ela inaugura uma tradição de críticas feministas à lógica, quer dizer, que a um gênero de conhecimento – que se manifesta como know-how ou habilidade na vida comum, mas se cristaliza como campo teórico no ambiente acadêmico, como é o caso de lógica e matemática – podemos atribuir as mesmas qualidades que atribuímos a pessoas, instituições, sociedades. O meu primeiro estranhamento, em resumo, é: esta analogia precisa ser detalhada, sob pena de confusão entre tipos ou modalidades de conhecimento, suas interações, e as dinâmicas sociais nas quais estes saberes são transmitidos, ensinados e aprendidos. Do contrário, a leitora não entende qual é o assunto do teu texto.

 

Uma disciplina formal, simbólica, como o são a lógica e a matemática, não é e nem pode ser opressora ou liberal em e por si mesma, seja em sua dimensão teórica ou prática. Por “prático” quero dizer, por exemplo, saber calcular a porcentagem dos juros que pagamos quando deixamos atrasar um boleto ou saber inferir de “todo político é corrupto” e “Maria do Rosário é uma política” que “Maria do Rosário é corrupta” – mesmo que ela não o seja de fato). E por “teórico” o saber enunciar os algoritmos usados para calcular porcentagens ou o saber que se um indivíduo faz parte de um grupo do qual se predica uma qualidade, podemos dizer dele que possui esta qualidade, independentemente de qual seja a qualidade ou de quem seja o indivíduo. Essa independência é o que a gente, quando ensina lógica, chama de caráter formal das inferências, e este caráter é o que permite que ambas, lógica e matemática, tenham uma aplicabilidade quase universal. Assim, disciplinas formais não são entidades dotadas de intencionalidade ou ideologia, como são pessoas, grupos, instituições. Nem à lógica (como queria a Nye) nem à matemática, como você parece querer, faz sentido atribuir características demasiado humanas. O alvo a ser acertado não é a disciplina, mas seus praticantes.

 

Mas quem são os praticantes de matemática e filosofia nas escolas, senão os professores e professoras? “Ah”, tu poderias objetar, “mas eu não estou me referindo aos colegas que lecionam na escola, estou falando doe quem elabora documentos que determinam arranjos curriculares (a nível nacional, estadual etc..) e dos gestores e gestoras que, ao fim e ao cabo, tomas decisões baseados nas hierarquias disciplinares típicas do senso comum.” Ao que eu responderia: ótimo! Então vamos falar sobre quais aspectos das práticas desses atores evidenciam a ligação entre suas preferências ideológicas e suas ações no campo dos estudos e políticas curriculares. Tem um bocado de gente séria que se dedica a trabalhar esses tópicos, e tem a realidade, sim, batendo à porta dos milhares de licenciados em filosofia e humanidades e dizendo “Não há vagas”. Mas a questão aqui é política, em vários sentidos, muitos deles implicados no seu texto sem nitidez sobre como se relacionam. Vou dar um exemplo:

Você afirma que “a nossa sociedade” valoriza sobremaneira a matemática, considerando-a útil por causa do tipo de raciocínio que ela ensina. A qual tipo de raciocínio você se refere: dedutivo, por analogia, por indução, raciocínios por redução ao absurdo? Pergunto porque, tendo tido a alegria de, durante anos, formar professores de filosofia, biologia, química, língua portuguesa, física e matemática, tive a chance de ler e discutir com eles inúmeros documentos oficiais nos quais se detalham os diversos tipos de raciocínio implicados em cada uma delas, bem como de descobrir diversas maneiras de utilizar as mesmas ferramentas lógico-matemáticas nos diferentes contextos disciplinares, de acordo com as particularidades de cada uma delas e as potencialidades interdisciplinares que revelam. Mas ainda que o seu texto não especifique a natureza “deste tal raciocínio” exigido pela matemática, eu consigo concordar com a sua ideia de que modos matemáticos de raciocinar não são ensinados apenas pela matemática como componente curricular (do contrário, como poderíamos explicar a aplicabilidade desses modos de raciocínio às demais ciências, não é mesmo?). Agora, quanto à alegação de que “a filosofia poderia dar conta” desses raciocínios “se pensarmos a matemática como um ramo da lógica”, meus estranhamentos mudam de figura.

 

Porque agora você está condensando, em uma breve e incidental frase, milênios de discussão. Sem exagero: as relações entre lógica, matemática e filosofia são tão atávicas quanto complexas (e a meu ver fascinantes), tão historicamente emaranhadas e em tantos contextos distintos (desde a China antiga, passando pela Mesopotâmia, pela Índia e pela África, antes de chegar ao mediterrâneo onde essas disciplinas, tais como as conhecemos “nasceram”), que meus escrúpulos historiográficos não me permitem consentir com o seu pressuposto fregiano. A redutibilidade da matemática à lógica, você deve se lembrar, foi uma vez, por obra de Frege, o carro chefe dos programas de fundamentação da matemática, programas cujas consequências indiretas até têm a ver com um modelo de pedagogia matemática com razão bastante criticado, e que hoje em dia felizmente vai sendo remodelado em favor de um ensino menos atrelado à teoria dos conjuntos e mais afeito às práticas de cálculo, raciocínio e provas que incluem recursos tão distintos quanto representações visuais, tácteis e diagramáticas de toda sorte, ferramentas de programação etc.. Desculpa, Luís Fernando, eu me comovo com esses tópicos e acabo me desviando do ponto. Estou começando a perceber, conforme escrevo e releio o teu texto, que o meu ponto principal é mesmo o teu uso de analogias. Vamos ver.

 

Entre os parágrafos três e quatro tu argumentas por meio de uma comparação entre filosofia e matemática, em especial seus “conteúdos”. É verdade que você não usa essa palavra, mas sugere que se trata disso quando fala do treinamento dos estudantes na prática de “resolução de matrizes determinantes” e compara esse aprendizado (que você mesmo reconhece necessitar de muito exercício) com um correspondente filosófico, qual seja, “todo o idealismo alemão”. Novamente, falho em ver o que há de relevante entre os dois casos como para manter a analogia de pé: primeiro porque entre aprender a resolver matrizes e receber uma explicação de todo o idealismo alemão não parece haver correspondência alguma. Num caso, o matemático, estamos falando de um saber-fazer, uma habilidade que se aprende por meio da repetida manipulação de símbolos de acordo com regras de transformação e substituição dos mesmos. No outro, o filosófico, estamos falando de um saber-que, um conhecimento “histórico” que você parece sugerir que só é bem apreendido quando o estudante o entende “por dentro”. Pois, novamente: a não ser que você explicite em que sentido as habilidades exigidas para fazer história da filosofia alemã são similares às habilidades demandadas para a resolução de matrizes, a analogia falha e, com ela, a força de teus argumentos em defesa da filosofia no currículo escolar.

 

Nota bene: eu mesma aposto na existência de conexões incrivelmente potentes a serem feitas entre as didáticas da história, da filosofia e da matemática, e opino que elas são obliteradas justamente pelo tipo de argumento que você apresenta. Tudo se passa, de acordo com sua mensagem, como se fosse legítimo discutir questões de chão de escola, como a distribuição de carga horária por disciplina, com base em considerações sobre o valor destas disciplinas para a sociedade, mas sem que se nos sejam oferecidos elementos relevantes, vindos da realidade, como por exemplo, os solavancos da aprovação da BNCC, a imposição autoritária da reforma do ensino médio e os efeitos disso nos estados, municípios e escolas. Mas mais do que isso, as lentes (heideggerianas, talvez) com as quais você sugere compreender a matemática como disciplina escolar me parecem ser inadequadas para compreender o que seja a matemática como campo do conhecimento. E esta distinção, entre as disciplinas escolares e os campos de saber e pesquisa acadêmica que lhes correspondem, é o marco zero de qualquer bom debate sobre como organizar os currículos escolares. Nova nota bene: mesmo que eu não me sinta confortável em entrar no mérito da perspectiva de Heidegger sobre as ciências formais, preciso te dizer que a ideia de que “O objeto matemático não toca o ser humano em sua humanidade” é extremamente contenciosa, e a meu ver só serve para engrossar o caldo discursivo cuja consequência nefasta acaba sendo a eliminação da matemática dos currículos de escolas públicas, enquanto nos das privadas os alunos não só aprendem matemática como programação – essa coisa tão perigosa de aprender que, no nosso dia-a-dia, vive guardada dentro das licenças de software proprietário, pelas quais a maioria de nós paga sem sentir. Há perigos e perigos.

 

Quando você enfim nos conta o que significa “compreender ideias por dentro”, então, fica muito evidente pra mim que, ao contrário do que você talvez desejasse, as analogias entre práticas matemáticas e filosóficas que você oferece servem pra contestar o que você quer provar. Senão, vejamos. Você diz: “Compreender as ideias ‘por dentro’ implica tentar enxergar aquilo que os pensadores enxergaram e que os motivou à reflexão.” Em que mundo isso não é exatamente o que se passa nas boas aulas de matemática, nas quais se trata de fazer os estudantes verem o mesmo que os matemáticos viram quando tentaram resolver um problema (tipo aquele da duplicação do quadrado que Sócrates propõe a Mênon, lembra?)? E deixar que os alunos experimentem soluções, e fracassem, e tentem novamente, coletiva e colaborativamente, até chegar a uma solução? Qual seria a diferença essencial entre esse proceder didático-pedagógico e o proceder socrático, dialógico, que a todos nos inspira como modelo de professor?

 

Bem, a conversa já está muito longa e eu preciso terminar. Hoje vou encontrar uns amigos, um grupo de matemáticos, filósofos e computeiros com quem temos um seminário de história e filosofia da lógica e da matemática. Lá, quando um desavisado começa com essa estória do que é a base do quê, ou sobre a suposta inutilidade da fórmula de Bhaskara para as crianças na escola, a gente filosófica respira e pergunta: base lógica, sociológica, histórica ou pedagógica? E seguimos pensando em como articular nossos saberes de modo que uns às outras se entendam, cada um na sua, mas com muitas coisas em comum.

 

A gente não se conhece, mas espero que possamos seguir conversando.

 

Cordiais saudações,

 

Gisele

 

Claremont, 12 de maio de 2023.

 

P.S.: Você poderia explicar a escolha do título do seu texto? Não vi referência nem à “falácia”, nem vi discussão sobre a dificuldade da matemática…